Transplante é cura. É uma vida normal

Quando uma doença chega em nossa vida, ela te dá um soco no estômago. É um choque de realidade, que altera sua rotina, modifica seus hábitos, impõe limites na sua vida e lhe confronta com a fragilidade de ser humano. Foi assim quando há 12 anos descobri no meu sistema renal a chamada Glomeruloesclerose segmentar e focal (GESF), uma doença glomerular e importante causa de insuficiência renal crônica. Doença nos rins é silenciosa. É sorrateira e vem invadindo aos poucos.

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Durante o período de recuperação, na Santa Casa, o acesso venoso permaneceu por 15 dias, para aplicação constante de soro e antibióticos várias vezes ao dia

Foi durante exame de rotina para academia que o experiente médico cardiologista atestou que meu coração era ótimo, mas a alteração alta na pressão arterial significava que, talvez, os órgãos responsáveis pela limpeza do sangue estavam doentes. E, de fato, eu já havia perdido 50% da função em ambos. Começou um longo período de exames, consultas e restrições alimentares.

Os primeiros procedimentos no Hospital São Lucas da PUC, em Porto Alegre, não revelaram a origem dos “rins preguiçosos”. Mas havia esperança de jamais entrar em hemodiálise ou de precisar ser transplantado. Como me disse na época uma médica residente, eu iria morrer com aquela doença, mas não por causa dela. Todavia, seguir à risca uma vida de privações não é nada fácil.

Mesmo com esforços, que incluíam a redução de ingestão de proteínas, potássio, gordura, fritura, carne vermelha e o corte de refrigerantes e bebida alcoólica, a disfunção renal avançava. A esperança de que seria uma falência lenta persistiu por 12 anos, tendo despencado de forma vertiginosa entre outubro de 2016 e janeiro deste ano. Como disse, é difícil se privar do que é bom, e muitas vezes me questionei se valia a pena viver sem uma barra de chocolate, sem uma costela gorda ou uma taça de vinho tinto.

Hoje faz sentido, os sintomas que surgiram tão vagarosamente que nem foram percebidos de imediato. Cansaço, acordar com dor de cabeça, tosse seca e ininterrupta, tonturas. Eram os últimos dias dos meus rins, que depois de muito lutar ao meu lado, desistiram da guerra.

De um dia para o outro, uma sexta-feira em meio as minhas férias, entrei em uma nova e cruel rotina. A hemodiálise não é a cura – isso apenas o transplante renal pode fazer –, ela é uma sobrevida que é capaz de, ao mesmo tempo, aprisionar e libertar.

Em fevereiro desse ano o Ibiá apresentou reportagem mostrando a rotina de quem realiza hemodiálise. foto: arquivo jornal Ibiá

A vida ligada a uma máquina
A hemodiálise é um procedimento de retirada mecânica das impurezas do sangue. Durante 4 horas – 3 vezes por semana – o paciente fica deitado na mesma posição, ligado à máquina através de dois cateteres – geralmente em um dos braços – introduzidos através de um sistema de circulação conhecido como fístula.

Através de microcirurgia o médico liga uma artéria e uma veia, criando esse sistema circulatório. Com a ajuda de uma mangueira, os aproximadamente cinco litros de sangue que uma pessoa adulta tem, saem e, pela outra, são devolvidos ao organismo. Nas 4 horas o sangue passa várias vezes pelo filtro. Não se submeter ao procedimento significa se entregar à morte. Não há outra saída. Por isso sempre encarei a hemodiálise como algo bom. Uma espécie de cura.
Assim que fui diagnosticado com falência renal e encaminhado ao procedimento, logo os médicos também disseram que meu quadro era perfeito fazer o transplante o quanto antes. E essa informação sim causa um impacto na pessoa. Pensar que você depende da vida, do corpo de outra pessoa para poder ter uma existência minimamente normal é perturbador. Mas a psicóloga oferecida pela clínica Nefroclin, junto ao Hospital Montenegro, me fez pensar diferente.

Sentada ao meu lado, junto à máquina de hemodiálise que não parava, a doutora Milena Bitencourt me fez entender que pessoas morrem o tempo todo. O que não ocorre com a mesma frequência é o ato solidário de doação dos órgãos. Logo, eu não estava torcendo para alguém morrer, mas para que acontecesse uma doação. Assim, entendi que a doação de órgãos é o maior ato de solidariedade entre pessoas desconhecidas que possa haver.

A compatibilidade surpreendente

Dos médicos ouvia que era um ótimo candidato a transplante. Mas entrar nessa fila demanda paciência e tempo. Uma bateria de exames que nem imaginamos que existem, são feitos. O receptor não pode ter qualquer infecção ou mínimo problema.
Nem cárie nos dentes é permitido. Nunca fiz tantos exames, tirei tanto sangue e entrei em tantos consultórios médicos. Finalmente fui definido como candidato à rede nacional de doadores e receptores.

Mais exames insistentes, uma infecção urinária para curar e uma alteração no exame preocupou o doutor Messias. Enquanto isso, senti o amor em minha volta. Foram tantas pessoas preocupadas, algumas surpreendentes, querendo saber e perguntando como ajudar. Foi neste momento que outro ato solidário extremo, e que pode ser exercido por todos nós, se manifestou.
A campanha de doação de sangue em meu favor foi emocionante e jamais esquecerei a união de amigos e até desconhecidos que atenderam ao apelo no Facebook. Em uma manhã de sábado chuvoso lotamos uma van rumo a Porto Alegre. Logo depois desta data o médico me incluiu na lista para transplante, em agosto passado.

Com mais de 700 doentes aguardando no Rio Grande do Sul, confesso que o desânimo bateu e me preparei para seguir por mais um ou dois anos na hemodiálise. Menos de dois meses depois fui surpreendido com o telefonema da Santa Casa. Um homem de 56 anos havia infartado em Curitiba, no Paraná, e a característica genética praticamente nos tornava irmãos.

Era feriado de 12 de outubro e, com a benção de Nossa Senhora Aparecida, aconteceu o ato de desapego e carinho da família do doador. Eram 16 horas e o médico me deu prazo até as 18 horas para estar na Santa Casa, em jejum. O tão esperado telefonema caiu no meio da rotina do trabalho e espalhou as responsabilidades para todos os lados.
Essa interrupção me fez questionar o médico quanto à compatibilidade. Ele não definiu, mas deixou claro que eram grandes as chances de compatibilidade. Não restou dúvida, larguei tudo para os colegas e fui à Capital acompanhado da minha namorada.

Na noite de 12 de outubro, Reinaldo aguardava o transplante ao lado da namorada, a também jornalista Andressa

Indo para cirurgia com alegria
A noite daquele dia 12 foi marcada por um temporal horrível que causou muitos prejuízos pelo Estado. Enquanto isso, em uma pequena sala do Hospital Dom Vicente Scherer, eu passava por mais exames e esperava o órgão ser examinado. Era próximo das 22h quando soube que, somente se o rim doado tivesse problema, eu não transplantaria naquele dia.
Um alívio e uma alegria imensa tomaram conta. Era como receber o presente de Natal há muito esperado. Dentro da caixa com gelo chegava o meu retorno à vida normal. Às 3h30mim uma enfermeira me encaminhou para a sala de cirurgia, que aconteceria por volta das 7h.

Em pouco mais de uma hora estava terminado e já era manhã de sexta-feira, dia 13, quando acordei na UTI para uma nova fase. A cirurgia renal é a menos invasiva, e os médicos deixam os outros dois rins originais. Logo, hoje tenho três rins. O pós-operatório é desconfortável, com dores e incômodos. Encarei como uma nova fase, que teria um fim em breve, assim como o período em que usei os cateteres emergenciais no pescoço. Mas, quando finalmente fui para o quarto de recuperação, a primeira jarra de água fresca que bebi justificou tudo que havia passado. Após 19 dias de internação já recebi alta hospitalar devido ao quadro de recuperação satisfatório e sai para uma rotina de dois meses de resguardo e seis meses de cuidados extremos.

Máscaras, luvas e higiene que inclui álcool gel para as mãos. O rim novo é um ser estranho no corpo, e a reação do sistema de defesa é expulsá-lo. O restante de minha vida será sob efeito dos imunossupressores. Na verdade, esses primeiros seis meses são marcados pela ingestão de sete medicamentos, mais exames e consultas semanais para acompanhar a evolução do rim e da receptividade do organismo. Aos poucos essa carga será aliviada. Mas tudo isso vale a pena. O transplante é a passagem para uma vida normal.

Hemodiálise é o tempo de espera pela doação
Não sou a melhor pessoa para descrever a experiência do processo de hemodiálise. Isso porque para mim o procedimento era muito tranquilo. Com exceção das primeiras sessões, quando tive queda de pressão arterial e câimbras, nos meses seguintes eu conseguia até dormir. Mas para outros pacientes o processo é mais sofrido, com dores e incômodos.
Eu logo entendi que para não sofrer deveria radicalizar minha mudança de rotina. Perdi mais de 25 quilos, cortei alimentos e passei o verão de 2016 sem beber nem água. Como o corpo retém todo o líquido, a hemodiálise precisa ser mais forte para tirar o excesso de água, o que leva ao sofrimento na máquina. A boca seca e o desejo de tomar um copo d’água é a pior lembrança desses dias.

Para reduzir a sede, colocava três goles na boca e depois cuspia. Fazer exercício também ajudava, pois o suor era forma de eliminar líquidos. E emagrecer era imperativo, pois a cicatrização da futura cirurgia de transplante seria mais fácil com menos gordura na linha da cintura. Então a rotina era para melhorar a qualidade de vida – e isso, após algumas sessões de fato ocorreu – mas também já era postura de quem era candidato a transplante.

Reinaldo Ew, jornalista do Ibiá, transplantado renal há dois meses, escreveu um relato a respeito da necessidade de um transplante até a sua realização.

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