Valor se refere a recursos repassados em 2008 para a construção de casas populares no Loteamento Bela Vista, no bairro Estação. Sem o pagamento, Município pode entrar no Cadastro de Inadimplentes
Há dez anos, em 2008, era assinado um convênio para a construção de 166 casas populares no bairro Estação e 34 no bairro Senai (Vila Esperança). O projeto fazia parte do Programa de Subsídio à Habitação de Interesse Social (PSH) – uma linha de crédito da Caixa para empreendimentos habitacionais para populações de baixa renda. Dali, saiu R$ 1,6 milhão para construção das 200 moradias.
Esse valor precisou ser complementado. O governo municipal da época entrou, então, com R$ 360 mil e buscou no Estado, em uma parceria com o Banco Economiza, R$ 200 mil, que foram divididos em duas parcelas. Havia, então, apenas R$ 10,8 mil para a construção de cada casa. Mesmo assim, iniciaram-se as obras.
Conforme os lotes iam sendo parcialmente concluídos, as pessoas na fila de espera para ganharem as casas – gente carente, que vivia em áreas de risco – foram recebendo as chaves, em meados de 2010. Muitas foram simplesmente invadidas. Entravam em residências com infiltração, sem forro, com a fiação das tomadas pendurada nas paredes, com o piso da cozinha praticamente oco, sem piso na sala, com portas de madeira cujo material inchava em dias de chuva. Os problemas não eram poucos.
Em 2012, o Ministério Público ajuizou uma ação para que os diversos problemas estruturais fossem resolvidos. A verba não chegava para tudo. Em 2014, era preciso prestar contas ao Estado em relação à primeira parcela repassada, de R$ 100 mil. Um vistoria foi realizada pelos técnicos e as prestação passou com ressalvas. Listava uma série de melhorias que ainda eram necessárias em um grande número de casas já feitas, que precisavam ser realizadas antes da segunda prestação de contas.
Ela chegou em 2015. Dos 19 itens solicitados para comprovar a obra para o Estado, sete não puderam ser apresentados. Faltavam casas para construir. As edificadas não haviam sido reparadas, como estipulado, e estavam em um estado precário. Sem essa segunda prestação de contas, desde aquele ano existe uma notificação dizendo que Montenegro pode entrar para o Cadastro de Inadimplentes, o Cadin, e ser oficialmente reconhecido como “devedor”.
O Estado deu até o dia 1º de julho deste ano para a devolução de toda a segunda parcela: os R$ 100 mil, corrigidos pela taxa Selic. O montante final será de cerca de R$ 170 mil. As ressalvas da primeira prestação de contas – com os reparos que haviam sido solicitados – também serão revistas e podem acarretar em um débito ainda maior.
Na semana passada, a Prefeitura encaminhou um Projeto de Lei para a Câmara de Vereadores, pedindo a abertura de crédito especial de R$ 200 mil, prevendo este pagamento. O Projeto deve ser votado hoje à noite. O Jornal Ibiá conversou com o atual secretário municipal de Habitação, Desenvolvimento Social e Cidadania, João Marcelino da Rosa, para compreender estas tratativas.
JOÃO MARCELINO DA ROSA, SECRETÁRIO DE HABITAÇÃO, desenvolvimento social e cidadania
O que as vistorias do Estado apontaram na primeira prestação de contas?
Faltavam algumas casas para serem construídas (no Senai foram feitas todas, mas faltaram no Estação) e foram vistos diversos vícios de construção. Questão de forro, instalação hidráulica, saneamento. Por causa deles, se aceitou a primeira prestação de contas, desde que, até o término da segunda etapa, fossem feitas reformas.
Em 2015, foi apontado que a segunda prestação de contas não seria possível. O que se verificou?
Teve uma nova vistoria. Dos 19 itens de prestação de contas previstos no Convênio de 2008, sete não se conseguiu apresentar. Era Declaração de Realização de Objetivos e Metas. O objetivo era construir 200 residências e foram construídas 183, então não houve realização; Relatório de Cumprimento de Metas; Termo de Recebimento Definitivo; Declaração de Habitabilidade, que, sem as reformas necessárias, não era possível; CND/CEI da obra concluída; Aprovação no Conselho de Habitação; e Averbação dos Imóveis no Cartório de Registro.
Foi recebida uma notificação de que o Município poderia ser registrado no Cadin. O que a Administração fez para buscar uma regularização?
Começamos visitas e conversas com o Estado para saber o que se podia fazer. Infelizmente, neste ano, um processo chegou até nós e ali nós começamos a ver o quanto era a nossa dívida. Tentamos parcelar. Estivemos duas ou três vezes com a secretaria de Habitação do Estado, mas não aceitaram. Nos deram até 1º de julho para pagarmos os R$ 100 mil da segunda parcela (da qual não foi feita a prestação de contas) corrigidos pela taxa Selic.
Em que situação ficou a prestação de contas da primeira parcela, que foi aceita com ressalvas?
Dessa, nós temos que apresentar, sob uma fiscalização do Estado – que já esteve conosco por quatro dias no mês passado – 100 casas do PSH em condições de habitabilidade, com o seu beneficiário de origem. Ou seja, com a pessoa que recebeu a casa. Nós conseguimos chegar no número de 90. Problema: com as vistorias, nas 50 casas que o Estado visitou, mais da metade precisam de alguma reforma para serem consideradas em condição de habitabilidade. Se não conseguirmos, temos que devolver mais R$ 1 mil por cada casa não apresentada, com o valor corrigido pela taxa Selic.
O que se pretende fazer para apresentar essas 100 casas em condições de habitabilidade?
É uma situação bem delicada pra nós. Talvez tenhamos que, nessa mesma abertura de crédito que está na Câmara, dos R$ 200 mil, entregar mais um dinheiro para pagarmos, de forma ajustada, o restante dessa 1ª parcela. Se nós não apresentarmos 50 casas, das 100 que eles pedem, o valor ajustado para pagar será de mais uns R$ 75 mil. Mas temos que pensar que, para termos essas 50 em condições, precisamos fazer a reforma de 27 casas e temos que pedir um novo prazo. É uma decisão política. Daqui a pouco, a gente paga os R$ 340 mil e liquida isso para que o município não entre no Cadin. Isso pode prejudicar todo o andamento dos projetos que temos.
O senhor não fazia parte da administração da época. Olhando para o projeto, acha que daria para construir casas em melhores condições com o dinheiro que se tinha?
Em minha opinião, mesmo sendo em 2008, é muito difícil construir uma casa com 10, 11 mil Reais. É um valor muito baixo para fazer uma moradia de qualidade. Foi um repasse pequeno para a construção de um grande número de habitações.
Como a Administração Municipal atual está tratando essa questão?
Nós herdamos este problema e estamos correndo atrás para resolvê-lo. Vamos pagar a conta, mas vamos dizer de quem é essa conta, apresentando rigorosamente todos os passos, com o que foi feito e o que deixou de ser feito. Nós também vamos judicializar a responsabilização do Banco Economisa, pela falta de fiscalização ao permitir os repasses. A partir disso, pretendemos individualizar os lotes, recadastrar os moradores que estão ali e regularizar a área para que eles sejam donos dos seus imóveis (hoje, alguns têm apenas uma cessão de uso e a maioria adquiriu a casa, por revenda). Eles vão ser donos, vão ter escrituras e vão começar a contribuir com o município para que o município possa melhorar o atendimento deles.
Comunidade sente consequências na pele
O conjunto de casas do PSH no bairro Estação foi intitulado de “Loteamento Bela Vista”. Ali os moradores convivem diariamente com as consequências da obra mal realizada. Afinal, muitos precisam acordar todo dia em um lar que nem pelo Estado é considerado habitável.
Todas as edificações entregues têm 45 metros quadrados, com um banheiro, dois quartos e uma cozinha/sala. Ari de Azevedo e a esposa Ana Claudia Vargas mudaram-se para uma delas há seis anos, com as duas filhas. Viviam, antes, na casa do pai de Ana e essa era a oportunidade de seguir a vida em um lar que era só deles. Chegaram em uma residência sem forro, sem vidros e sem diversos outros itens.
“Diziam que a gente só poderia entrar quando já tivesse água e a parte elétrica. “Quando eu entrei, não tinha nem os bicos de luz”, revela Ari, que hoje está desempregado. As aberturas, de madeira, inchavam com a água e não fechavam. A sala estava só com o contra-piso. Muito foi sendo reparado pelo próprio morador, com os fundos que o orçamento da família permitia. No banheiro, os azulejos estão ocos e parte do piso afundou, precisando ser refeito depois.
A catadora Tereza dos Santos lamenta o momento em que aceitou a mudança para o Estação, há oito anos. Ela vivia em uma casa de madeira em uma área considerada de risco no bairro Bela Vista. Sua casa, hoje, tem a fiação das tomadas pendurada nas paredes e ela já sofreu com inúmeros problemas nos encanamentos – com vazamentos, infiltrações e canos estourados. A parede fina, dividida com outra casa, também não agrada. “Eu não vejo a hora de sair. Já me incomodei muito com isso aqui”, desabafa.
Com um problema de saúde, Deise da Silva Coelho só consegue caminhar com o auxílio do marido e dos filhos. Transitar dentro de sua própria casa, com um piso que, em partes, já afundou e é cheio de altos e baixos, é desafiador e perigoso. “É uma dificuldade enorme”, lamenta. Deise é natural de Taquari e mudou-se para ficar mais perto do tratamento de que necessita. Chegou com o esposo e os três filhos em dezembro do ano passado. A casa foi comprada de uma pessoa que ganhou o imóvel da Prefeitura.
Quem pode, fez melhorias por conta
A comunidade do “Loteamento Bela Vista” é formada por famílias carentes. Muitas, por isso, não tem condições de realizar obras de melhoria nas casas que receberam. “Tem pessoal que têm dois, três filhos. Às vezes, chega a um ponto em que, ou come, ou arruma a casa”, avalia o aposentado Régis Roberto dos Santos, um dos moradores. Ele vive sozinho e, por isso, teve mais condições de realizar certas melhorias.
Quem também pode fazer o mesmo foi a catadora Florentina Dias. Junto do marido, que trabalha no Polo Petroquímico, construiu mais um banheiro, fez uma calçada e conseguiu deixar a moradia com mais “cara de casa” sem contar com o apoio do poder público. “Nós fomos arrumando. Gastamos um monte em cima, mas hoje eu tô feliz com ela”, coloca.
Revenda desenfreada de casas
Os moradores do loteamento receberam uma cessão de uso das casas do PSH. Ali, assinaram um termo em que se comprometiam a não vender, trocar ou alugar as residências por um período de dez anos. No estado precário em que receberam as edificações, no entanto, muitos não esperaram o período. Colocaram a casa à venda, como forma de se verem livres da situação em que se encontravam e, de alguma forma, tirarem algum lucro.
Havia casas, logo no início, oferecidas por apenas R$ 500,00. Há relatos de gente que trocou a residência por uma geladeira. Por cima, os moradores atuais estimam que mais da metade do loteamento já foi revendido. Algumas edificações já estão no terceiro dono e muitos nem são mais de montenegrinos.
A comercialização – da forma que ocorria – foi fator determinante para o surgimento de uma consequência séria: o aumento da criminalidade. Hoje, o bairro Estação estampa páginas polícias e é popularmente conhecido como um local violento e com pontos de tráfico. A relação é clara. No meio de pessoas de bem, chegaram indivíduos e práticas que mancham a reputação do bairro e o colocam em risco.
Falta de planejamento é evidente no local
Caminhando pelas ruas do Estação, é clara a falta de atendimento para a comunidade. Todo morador tem queixas. Terrenos baldios estão cheios de mato, esgoto a céu aberto corre pela rua, faltam lixeiras e dificilmente se encontra uma via que não esteja esburacada. Além dos problemas na construção, é evidente que não houve o devido preparo para receber os novos moradores. Em alguns pontos, não tem nem poste de luz. O loteamento não é atendido pelo serviço dos Correios e tem poucos horários de ônibus. Até taxistas precisam ser “convencidos” para que aceitem entrar no local. Não só nas casas, mas no bairro como um todo, as tais “condições de habitabilidade” são questionáveis.