Uma questão que é de saúde pública, mas cercada de preconceitos, entrou em forte discussão nas últimas semanas. Assim como em diversos países, no Brasil não é permitida a doação de sangue por homossexuais. Preconceito ou questão de saúde? O caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Atualmente duas normas – uma da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outra do Ministério da Saúde – vetam a doação de sangue por homossexuais. Elas permitem a doação apenas 12 meses após o último ato sexual do tipo. Porém, uma ação de autoria do Partido Socialista Brasileiro (PSB) que tramita desde o ano passado e agora chegou ao Supremo argumenta que essa barreira é discriminatória.
A Procuradoria Geral da República (PGR) também se manifestou sobre o assunto. Segundo tese defendida em memorial enviado pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ao STF, a proibição de doação de sangue por homossexuais é inconstitucional, por determinar uma discriminação pautada em orientação sexual, em violação à igualdade e à dignidade humana, asseguradas pela Constituição Federal.
O relator do processo no STF, ministro Edson Fachin, deu o primeiro voto sobre o tema. Ele é favorável ao fim da proibição, e argumenta que ela ofende a dignidade da pessoa humana por impedir que elas sejam como são. Na quarta-feira, 25, outros ministros se manifestaram e o único voto em sentido a manter a proibição veio de Alexandre de Moraes. Ele entende que as restrições não são medidas arbitrárias e discriminatórias, por estarem baseadas em estudos científicos.
“A ideia não foi e não é, de forma alguma, a discriminação, que é inaceitável”, disse o ministro. A votação seguiu na quinta-feira, 26, quando o ministro Gilmar Mendes pediu vista, interrompendo o julgamento. Até o fechamento dessa edição não foi dado prazo para sua retomada.
“Quero poder doar sangue”
Ter um amigo ou conhecido necessitando de doação sanguínea, estar saudável, disposto a ajudar, mas descobrir ser impedido devido a sua orientação sexual. Esse enredo, já vivido por tantos gays, indigna Rafael da Costa. Recentemente ele quis participar de uma campanha de doação e se sentiu discriminado. “Acho injusto. Uma ignorância. Porque eu não posso? O sangue de todos é testado e, se tiver algum problema, vão descartar, então qual a diferença entre eu e um heterossexual doar?”, questiona Rafael.
O fotógrafo de 23 anos vê um caráter discriminatório no impedimento. “É preconceito. É me impedir de fazer algo somente por ser gay. Eu quero poder doar como qualquer pessoa”, defende ele, lembrando que enquanto isso seguidamente se observa campanhas devido a falta de sangue nos hemocentros.
Medida remete ao início da epidemia de Aids, décadas atrás
A proibição aos gays tem sua explicação ainda no final da década de 70, quando do surgimento da epidemia de HIV. O professor do departamento de Medicina Interna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e integrante do setor de hemoterapia no Hospital de Clínicas de Porto Alegre Tor Onsten explica que comunidade gay foi a mais afetada inicialmente. “A Aids era chamada a ‘doença gay’, porque o vírus circulava com muito mais intensidade entre os homossexuais. Muito pela troca intensa de parceiros”, diz Onsten. Hoje há uma migração nesses dados, que se alteram conforme a localidade. Em muitos casos ainda há uma prevalência da circulação do vírus entre homossexuais.
O professor Tor Onsten explica também sobre os testes aplicados no material de qualquer doador sanguíneo. A transfusão de sangue é um processo extremamente seguro porque o sangue passa por uma série de testes muito sensíveis que verificam HIV, Doença de Chagas, Sífilis e Hepatite, entre outros. “Pode ocorrer desses testes apresentarem o chamado ‘falso positivo. Porque são muito sensíveis. São testes de triagem e não de diagnóstico, como os feitos em um paciente”, diz Onsten. Se positivo, o doador é avisado de que o teste apresentou algum problema e ele deverá fazer outros exames. Esses sim, de diagnóstico, que irá confirmar ou não o anterior. Não há a possibilidade de um resultado “falso negativo”, o que garante a segurança ao receptor do sangue.
Porém, existe a chamada “janela imunológica”, período que pode durar alguns dias em que a pessoa está infectada por um vírus e ainda não desenvolveu anticorpos a ele ou a sua presença no organismo ainda é tão pequena que não aparece nos teste.
A chance de contaminação é de um em 1 bilhão, mínima, por tanto, mas existe. Por isso é importante, independente da orientação sexual, que o doador de sangue mantenha hábitos seguros como o uso de preservativos, não tenha muitos parceiros sexuais, nem utilize drogas. “O doador não deve pensar em doar porque é um direito seu. Ele deve querer ajudar alguém”, destaca o especialista.
5% de todo o sangue doado é descartado
O médico hematologista Tor Onsten se mostra favorável quanto a flexibilização da regra.
Para ele, a questão em discussão não deve ser a sexualidade e sim a segurança ao paciente que recebe o sangue. “Quem teve câncer não pode doar porque não é seguro. Quem fez tatuagem recentemente também não. É uma questão de proteção”, diz Tor.
A delimitação deve valorizar os hábitos de vida. “Acredito que um homossexual, assim como o heterossexual, que tem parceiro fixo e fiel e não trocou de parceiro no último ano, pode doar sangue”, acrescenta.
E, é preciso lembrar, falta sangue nos hemocentros. No cenário mundial, o número de doadores de sangue está em queda. Parece que as gerações mais jovens não estão cumprindo esse importante papel. E também precisa ser considerado que pelo menos 5% de todo o sangue doado é descartado porque algum problema aparece nos testes.
O principal, considerando o material doado no Hospital de Clínicas, é por Hepatite B. Esse descarte – necessário – representa custo e, principalmente, reduz ainda mais o estoque.