Chegando na aposentadoria, servidora lembra décadas de desafios e dedicação
No número 90 da rua Coronel Antônio Inácio, Silvana Aparecida Furtado de Souza Schons vive hoje suas últimas horas à frente da Vigilância Sanitária de Montenegro. Mais ainda, as últimas de 35 anos de dedicação ao serviço público. 33 só na Administração Municipal.
Mas se engana quem pensa que o ritmo de trabalho diminuiu com a aposentadoria batendo na porta. Bem ao contrário. Sempre cheia de ideias, Silvana segue suas rotinas diárias, alinhando diferentes projetos e traçando ações para que os colegas toquem em frente nos meses que estão por vir.
“Toda missão que a gente recebe é muito séria. O meu slogan, do ano passado para cá (quando foi tomada a decisão da saída) é trabalhar no último dia como se fosse o primeiro”, ela declara. E com o fim do expediente deste 14 de fevereiro se aproximando – oficialmente, o seu último em serviço – as lembranças dessa “missão” voltam com ares de dever cumprido.
Foram doze anos dedicados à Biblioteca Pública de Montenegro
Silvana nasceu em 1965 na cidade de Nova Prata. Filha de militar, ela e a família sempre mudavam muito. Por isso, já viveu em Encantado, Muçum, Lajeado, Cruzeiro do Sul e Bom Retiro do Sul. Chegou a Montenegro em 1979, onde está até hoje. Foi onde construiu sua história.
O serviço público foi, primeiro, uma necessidade. É que era difícil arrumar trabalho recém saída do “2º Grau” da Escola São João Batista. Então, para custear a tão sonhada graduação em Nutrição, ela prestou concurso para a Companhia Estadual de Habitação, a Cohab. Passou, aos dezenove anos de idade.
Mas a história por ali foi curta. Acabou que a Cohab foi extinta logo que Silvana começou a trabalhar por lá. Desempregada, surgiu a oportunidade do concurso para a Prefeitura de Montenegro, já em 1987. O cargo era de agente administrativa auxiliar e foi através dele que a jovem mulher entrou na Administração Municipal.
Ainda longe da área da saúde – que tanto marcou essas mais de três décadas de carreira – Silvana equilibrava os estudos com o tempo de trabalho destacada para atuar em um local que tem todo seu respeito e carinho: a Biblioteca Pública de Montenegro. “Embora não fosse a carreira que eu estava perseguindo, esses momentos de Biblioteca foram intensos”, recorda. “Imagina! Trabalhar com cultura, literatura, conhecimento. Foi um momento mágico para mim.”
Um “momento” que durou prazerosos doze anos. Na Biblioteca, Silvana foi contadora de histórias infantis, foi arquivista, foi de tudo um pouco. Sob a direção de mulheres que marcaram a educação montenegrina, como Elita Leipnitz Griebeler e Lylian Schoellkopf, aprendeu a importância do aprendizado; do pensar diferente; e sobre como usar a criatividade para driblar as dificuldades, sejam elas culturais ou financeiras. São ensinamentos que a chefe da Vigilância Sanitária carrega consigo até hoje. Isso ninguém pode negar.
Missão dada no início da carreira ainda ecoa
Quando, enfim, conquistou a graduação em Nutrição, Silvana prestou outro concurso para a Prefeitura de Montenegro, então de acordo com sua formação. Tirou o primeiro lugar no ano 2000 e foi chamada em 2002 para mais uma etapa no serviço público. Quem lhe esperava como chefe era o então secretário de Saúde, Agenor Rigon. E ele tinha um desafio a propor.
“Minha expectativa na Saúde era atender dietas, acompanhar grupos”, confidencia. “Porque era onde eu tinha experiência. Nas horas vagas do serviço na Biblioteca, eu já atendia em escritório. De 96 até 2002, eu atendia clínica. Então, era a minha expectativa.” Nada disso. A vaga para Silvana era na Vigilância Sanitária.
Acontece que, na época, o Município ainda se adaptava ao processo de descentralização do Sistema Único de Saúde. Desde 1996, muitas das atividades de Vigilância que eram do Estado passaram para os municípios, o que demandava uma organização que Montenegro ainda não tinha. Era o que Agenor Rigon queria que Silvana fizesse. “Era um conhecimento novo para mim; e eu tive que forjar desde o primeiro dia esse novo trajeto”, recorda.
O desafio não era pequeno. Não havia uma unidade na Vigilância Sanitária; e o órgão era visto como punitivo e negativo. Havia até situações passadas de agentes que usavam o cargo para benefício próprio. “Era um desafio chegar nos lugares com essa herança, mas a minha missão era clara: organizar o serviço e lhe dar uma cara respeitada e conhecida”, conta Silvana. Foi o que ela fez.
“Pequenos Vigilantes” já chegou a 200 municípios gaúchos
No contato diário com os estabelecimentos, Silvana percebia que, em muitos casos, as irregularidades perante às regras da Vigilância eram mais falta de conhecimento do que má fé. Com toda a bagagem trazida da área da Educação, vivenciada na biblioteca, ela quis fazer diferente. Criou o Projeto Qualificar, que convidava os empresários para palestras sobre boas práticas sanitárias. Isso em meados de 2003, antes da Anvisa cobrar que empreendimentos da alimentação tivessem a capacitação.
Foi naquele ano que, convidada para palestrar sobre segurança alimentar em uma escola, Silvana criou o “Pequenos Vigilantes”. Forma encontrada para educar jovens estudantes sobre a importância da Vigilância Sanitária, dos cuidados com o manejo dos alimentos, dentre outras competências, o projeto foi pensado para ser aplicado de forma lúdica; para formar cidadãos mais conscientes e replicadores dos conhecimentos dentro de casa e nas comunidades.
Não podia ter dado mais certo. Em 2006, a iniciativa foi inscrita na primeira edição do Encontro de Experiências Exitosas da Rede Estadual de Saúde. Na capital, com o Teatro Dante Barone lotado, Silvana apresentou um projeto que, em sua percepção, era muito simples. Surpreendeu e foi surpreendida. “Ali estavam representantes do Centro Estadual de Vigilância, das coordenadorias, pessoas na carreira há muitos anos. E quando eu terminei, tinha gente chorando, emocionados de ver como a Vigilância podia, finalmente, ter outra cara”, lembra.
Logo após a apresentação, secretarias dos municípios de Panambi e Agudo já a procuraram buscando replicar o projeto em suas cidades. Em 2009, o Centro Estadual a abordou, querendo transformar a iniciativa em um movimento de todo o Rio Grande do Sul. Hoje, mais de 200 municípios gaúchos já formaram turmas de “Pequenos Vigilantes” com seus estudantes do quarto e do quinto ano do Ensino Fundamental. Ele já é aplicado, também, fora do Estado.
“Hoje, eu já encontro ‘Grandes Vigilantes’ na rua”, relata a criadora do projeto. “Eles lembram de mim, me chamam de professora e já estão passando conhecimento para os filhos. Nós conseguimos formar uma geração um pouco mais atenta e mais cuidadosa. É uma recompensa saber que eles aproveitaram esse conhecimento.” Cheia de orgulho, Silvana destaca, sem dúvidas: o projeto é sua “menina dos olhos”.
O fim de uma era de muito comprometimento
Em 2020, Silvana fecha dezoito anos de Vigilância Sanitária. O cargo de chefia – por anos, ele era de responsabilidade do próprio secretário de Saúde – foi seu no último ano do governo Percival de Oliveira, em 2012, e a partir de 2015, com o governo Aldana-Kadu.
Em sua história recente, dentre projetos e ações, destaca-se a luta contra a proliferação do mosquito Aedes aegypti, o responsável pela transmissão de doenças como a dengue e a zika. Com número recorde de focos do animal registrado e a comunidade deixando a desejar até nos cuidados mais simples, a servidora liderou o órgão em mutirões de panfletagens, caminhadas, palestras, concurso de poesias sobre o tema e até a grafitagem de um muro em prol da conscientização.
Rompendo o paradigma de uma Vigilância que afasta a comunidade, Silvana destaca uma relação próxima com os empreendedores do Município; e a disposição do órgão para atendimento, tirada de dúvidas e todo o assessoramento perante a legislação pertinente. “Isso deu nova face à Vigilância Sanitária, que não é só vigiar e punir, mas vigiar, educar e punir”, ela ressalta.
Nesse meio tempo, a servidora foi a única profissional do Estado selecionada para Formação Docente em Vigilância em Saúde na Fundação Osvaldo Cruz, em 2010. Em 2015, ela fez mais uma especialização em Gestão em Saúde pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Coroando todos esses anos de atuação, Silvana acompanhou a sanção do Código Sanitário do Município de Montenegro no fim do ano passado. É uma legislação municipal que reúne normas antes dispostas em diferentes leis e portarias estaduais e federais que objetivam a prevenção e a promoção da saúde pública. Um ponto final da missão recebida em seu primeiro dia de trabalho, num passado já bem distante.
DESPEDIDA
Dar tchau é sempre agridoce. Silvana conta que se orgulha dos colegas e amigos angariados; e destaca que, o que não está no Código Sanitário – iniciativas como o próprio Pequenos Vigilantes – está devidamente protocolado caso os que fiquem (e os que chegam) queiram dar sequência. “Mas que levem sempre o brilho no olho”, ela indica, com os próprios olhos brilhando de carinho por tudo o que passou.
A decisão de deixar o serviço público foi movida por motivos pessoais. E se depois de ler a matéria até aqui, o leitor ainda achar que essa nova-pratense – mais montenegrina que muito montenegrino – vai apenas curtir a aposentaria daqui para frente, enganou-se. Silvana Aparecida Furtado de Souza Schons vai voltar para o mundo dos livros. Dessa vez, como autora. Já neste ano, deve começar a pesquisa e as entrevistas para uma obra que quer contar a trajetória da saúde pública de Montenegro até aqui. Terá muito trabalho pela frente! Vem coisa boa por aí!