Eis o homem! Solitário dentro de um barco, a pele gretada pelo sol, em busca de seu alimento. A alma presa em sua carcaça limitada, sua ferramenta e sua casa. No caudaloso e turbulento rio da vida aproveita os remansos para atracar em si mesmo e descansar de suas fraquezas, de seus desejos, de suas ilusões.
Mas não descansa.
Eis o homem! O homem e seu peixe, fruto de sua argúcia, paciência, filho de sua necessidade. O homem e sua paz ressequida pelo sol, pelo vento, pelo medo. O homem e seu futuro, um solavanco do nada sobre o vazio. Eis o homem preso aos anzóis dos amores. Ao seu amor próprio e ao amor de quem ama. Amar é sempre um ofício a dois. Ele precisa do amor de quem o ame.
E onde está o amor de quem o ame?
Eis o homem refém de seu tempo, de seu passado, com suas rugas, sua barba branca, sua testa franzida, frisos arados pela desesperança. Ei-lo aqui, nu, ruminando em seu mastigar eterno o fato de nunca compreender o que mastiga ou por quê. Ele que nunca está a altura de um sentido, mas que rema e rema em busca de um.
Eis o homem e seus tijolos aquáticos com os quais construiu sua casa de fantasias protegida apenas por suas paredes de sonhos. Ei-lo semente de si mesmo, cujo único e verdadeiro foi sobreviver e deste único foi capaz de gerar todos os outros.
Eis o homem corroído pelo fato de ser alguém no começo, mas cujo destino é ser ninguém. Ei-lo com suas breves e frágeis verdades e suas esperanças mortas. Com sua ignorância vestida às vezes com as cores chamativas de um orgulho tosco contrastando com a humildade de sua sabedoria.
Eis o homem e as mágicas de sua vontade, de sua perseverança, de sua sina em construir caminhos, atalhos, pontes. Ei-lo também com as mágoas dos abandonos. Só a si mesmo, não abandona. Mesmo quando não se encontra, mesmo quando se perde nas veredas da tristeza, mesmo derrotado por seu próprio espírito, mesmo quando declara guerra à própria alma, mesmo quando se arrasta na lama gerada por suas próprias lágrimas, o homem ainda é o antigo menino mascarado, enfrentando os males do mundo, herói de si mesmo.
Eis o homem resumo de um milhão de anos de solidão e desespero. Jogado à própria sorte por um deus arredio num mundo inóspito e cruel. Contudo, ei-lo sobrevivente de seus martírios tentando moldar a paz com o barro da guerra, plantar a flor da tolerância em meio às ervas daninhas da insensatez, tentando colher o fruto doce de um beijo da árvore do veneno.
Este é o homem e o seu barco e seu abismo. Sua fúria o cega e é sua paz que ilumina suas negras veredas. Mas as lamparinas da paz são vulneráveis às menores brisas. Daí no mais das vezes atacar o outro ao invés de compor com ele. O outro é sempre um estranho, um estrangeiro querendo um naco do que lhe pertence. E acabamos cada vez mais sozinhos com medo de construir a arte do encontro.
Por fim, eis o homem! Remando só num rio repleto de homens sós.