Quero apresentar para vocês a Lúcia, uma jovem médica cuja aparência exemplifica a miscigenação brasileira. De onde vem cada característica física ela não sabe bem. Mas, cá entre nós, a garra e a teimosia Lúcia sabe reconhecer a origem sem precisar de muito esforço. Hoje, ela encara uma UTI lotada de pacientes sabendo que para muitos o respirador não será o suficiente e, em alguns minutos, horas ou dias, terá de informar mais uma família de que a batalha foi perdida. A força para, sabendo de tudo isso, levantar todas as manhãs e ir trabalhar vem da história de Lúcia e das que lhe antecederam.
Lúcia tem muitas lembranças da avó. Ela se chamava Margarida, mas, na rua onde moravam todos a chamavam de “Vó Ida”. Ela nunca erguia a voz, fosse pra brigar com os netos após uma travessura qualquer ou pra chamar para o lanche da tarde. Pro segundo, nem precisava. O cheirinho do bolinho de chuva coberto de açúcar com canela atraía qualquer um pra mesa. Mas a verdade é que a Vó Ida, tão doce quanto aqueles bolinhos, teve uma vida amarga e, de tanto lhe negarem voz, foi emudecendo.
Nascida em família de agricultores, Ida saiu da roça do pai para casar e passou a vida criando filhos. Teve 11 crianças, mas perdeu quatro ainda muito jovens. Quando faleceu, aos 74, três mantinham a convivência com ela. Sua maior tristeza foi não ter dado estudo pros filhos. O marido achava que eles tinham que aprender ofício e não perder tempo na escola. Deveria ter se imposto, disse depois, já viúva. Mas aí já era tarde. Fez o que pode. Queria ter podido fazer mais. Culpou-se a vida toda. A idosa da qual Lúcia se recordava quase não falava, apenas sussurrava. Faltava-lhe voz. Sobrava culpa.
Um dos filhos que não cuidaram de Ida até a morte foi a caçula, Ana. Elas não puderam ficar juntas a vida toda. Ao contrário, foram anos afastadas. Ana foi embora de casa ainda menina. Tinha só 17 anos. Dizia não querer repetir o destino da mãe, criando filhos e obedecendo marido. Jurou que ia pra cidade grande, trabalhar e fazer dinheiro enquanto era jovem e bonita.
Voltou pra terra natal duas décadas depois, sem o viço da juventude, com pouco dinheiro e sem profissão, mas trazendo duas filhas e muito medo. Fugia do ex-marido, que não aceitava o divórcio. Amor ela sabia que não era a razão. Fosse isso, não teria sido espancada tantas vezes. Cá entre nós, Ana se arrependia de ter deixado Ida pra ganhar o mundo e ter acabado em mãos que tanto lhe feriram. À mãe, já viúva à época, Ana contou tudo o que aconteceu. Recebeu acolhimento.
Foi então, aos 9 anos, que Lúcia conheceu a Vó Ida. O plano era as quatro começarem uma nova vida. Era. Ana conseguiu emprego de cozinheira num restaurante e, num dia de muito trabalho, ouviu a porta do salão abrir-se num estrondo e a arma foi engatilhada. Não se virou da pia onde descascava batatas. Sabia quem estava às suas costas. Sabia o que aconteceria. Só conseguia pensar no que seria de suas meninas. E, em pensamento, pediu que tivessem um futuro melhor. Nada disse. Nada gritou. Faltava-lhe coragem. Sobrava culpa.
Nesse dia, Lúcia perdeu a mãe. O pai ela já tinha perdido faz tempo, nunca fora capaz de perdoá-lo. Enquanto esteve preso, nunca recebeu visita das filhas. Quando foi solto, jamais as procurou. Lúcia e a irmã, Gabriela, cresceram pelas mãos e o coração da Vó Ida. Quando ela se foi, coube à Lúcia assumir a guarda da mais nova, ainda adolescente.
Cá entre nós, era muita responsabilidade, mas ela não teve escolha. Trabalhava de dia para sustentar a casa. À noite, estudava para passar no vestibular. A faculdade de Medicina não foi fácil. A residência também não. Formou-se quando a pandemia estourava no Brasil. Também por isso, emprego não foi difícil de conseguir. Agora, a vida já estava um pouco mais fácil…ou nem tanto.
Ontem havia discutido com Gabriela. A irmã lhe lembrara que pouco “aproveitara da vida”. Pensou em dizer-lhe que fez isso porque não teve escolha. Mas calou-se, no fundo entendia a irmã. Cá entre nós, Gabriela tinha razão. Mas a UTI não dava trégua. E sim, a sua vida, a sua juventude, talvez, estivesse sendo deixada de lado…por um propósito. Não respondeu à irmã. Faltavam-lhe argumentos. Sobrava culpa. Seguia, a cada dia. Porque precisava ser assim.
PS: Vovó Ida, Ana, Lúcia e Gabriela não existem. Ou melhor, existem em cada uma de nós mulheres, sempre culpadas. Para todas nós, um 8 de março de muita reflexão pelo que fomos, somos e seremos.