Psiquiatria é mal representada na ficção

Loucura forjada por remédios. Clínica que se assemelha a uma prisão. Choques elétricos. Anos de internação. Cenas que chamaram a atenção em capítulos de “O Outro Lado do Paraíso”, novela de Walcyr Carrasco, apresentada às 21h, pela Rede Globo. O problema é que as cenas que estão subindo os níveis de Ibope do folhetim não condizem com a realidade, revoltam os profissionais de psiquiatria e psicologia e afastam pacientes do consultório, prorrogando seu sofrimento.

Na novela global, Sophia (vivida por Marieta Severo), no intuito de tomar posse de minas de esmeralda localizadas nas terras de sua nora, Clara (Bianca Bin), passa a dopá-la. Após um diagnóstico de esquizofrenia paranóide, realizado sem exames, ela é internada em um hospício e, numa cena chocante, contida brutamente por enfermeiros e passa pela chamada eletroconvulsoterapia (ECT), conhecida popularmente como “tratamento de choque”. A personagem passa anos na “clínica” que se situa numa ilha e foge após fingir-se de morta e ser jogada ao mar dentro de um caixão. Mesmo considerando que essa fase da novela se passa 10 anos atrás, é preciso destacar que praticamente nada desse enredo corresponde à realidade.

Para esclarecer essas cenas que revoltaram os profissionais da saúde, conversamos com a médica psiquiatra Graziela Stein de Vargas. Ela destaca que tudo está sendo retratado de uma forma muito diferente da realidade. A começar que a oferta de um medicamento do qual a pessoa não necessita gerará apenas efeitos colaterais, como sonolência. “Não vai tirar o discernimento de ninguém. Não se induz à demência”, diz Graziela. As clínicas e alas psiquiátricas também não se assemelham em nada ao mostrado na ficção. “Aquilo é uma prisão e não um local de saúde. Da forma mostrada, se está colaborando para o preconceito contra a psiquiatria e as doenças mentais, colaborando para que os pacientes não busquem por ajuda”, diz a especialista.

Uma das cenas mais assustadoras também não ocorre em hipótese alguma. Graziela de Vargas explica que a eletroconvulsoterapia é realizada apenas em três casos muito específicos. Jamais como uma primeira opção de tratamento e, além disso, não da forma encenada. “Eu, em 13 anos de profissão, jamais tive um paciente com indicação para ECT. E, mesmo num caso necessário, não seria dessa forma trágica”, enfatiza. A terapia é realizada somente em clínicas e hospitais, com eletrocardiograma e monitoramento. A sessão dura apenas cinco minutos e o paciente está sob anestesia.
“É uma descarga elétrica utilizada para regular os neurotransmissores. Assim como um marca-passo pode ser utilizado por quem tem problemas cardíacos, similar tratamento utilizado por quem sofre de epilepsia. Um procedimento feito com toda a segurança e apenas quando não há alternativa”, destaca. A ECT é indicada apenas em três casos: grávidas que não podem realizar tratamento medicamentoso para alguma doença psiquiátrica como a esquizofrenia, pacientes com transtorno ou retardo mental graves em que já foram tentadas todas as demais alternativas sem sucesso, e casos em que o paciente já tentou suicídio várias vezes e não apresentou respostas aos demais tratamentos.

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Graziela Stein de Vargas, psiquiatra

A evolução dos tratamentos e a Luta Antimanicomial
Manicômios não existem mais. E eles remetem à história da medicina e da psiquiatria. Um tempo em que os pacientes sifilíticos ou leprosos – sem cura na época – eram isolados. “Era um lugar de abandono, porque as famílias não buscavam os pacientes com medo de uma contaminação”, explica Graziela. A medicina evoluiu. Na psiquiatria moderna, que vem da década de 50 para cá, houve grande melhora na oferta de medicamentos.

Atualmente, a internação ocorre apenas em casos agudos e dura, em média, 30 dias. Passada essa fase, o paciente segue em tratamento, porém junto da família. E não são internações forçadas. Isso também se refere aos tratamentos por dependência química. Existem internações compulsórias, mas em casos agudos, muito específicos, em ambiente hospitalar e com todo um acompanhamento. “Sempre que uma internação é compulsória, o juiz tem de ser avisado em até 72 horas”, explica. Graziela salienta, porém, a necessidade de se assegurar a situação das fazendas terapêuticas para dependentes químicos. Sem o investimento público necessário à saúde mental, muitas das fazendas terapêuticas são particulares e é importante que elas ofereçam atendimento de psicólogos e psiquiatras aos pacientes.

Já a eletroconvulsoterapia surgiu na década de 30 e carrega até hoje um estereótipo muito negativo. Porém, evoluiu muito. Em muitos casos, o paciente que utiliza a técnica nem mesmo está internado. “Há muitos preconceitos que atingem as doenças mentais. A história mostra isso. Casos de ‘histeria’ tidos como exclusivos das mulheres. Crianças com transtornos, mas encaradas como de mau comportamento. Casos de demência de um idoso vistos como teimosia. Depressão tratada como ‘falta do que fazer’. Não deve ser encarado dessa forma. É necessário que se busque auxílio médico. São doenças. E têm tratamento”, finaliza a médica psiquiatra Graziela Stein de Vargas.

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