Doação de órgãos: Luta, esperança e fé

O Brasil possui o maior sistema público de transplantes do mundo. Além disso, o País é o segundo maior transplantador do planeta, atrás apenas dos Estados Unidos. No mês de setembro, a atenção se volta para a conscientização da doação de órgãos. É a campanha Setembro Verde. Atualmente, a legislação não possibilita que alguém deixe registrado por escrito o desejo de ser doador, somente a família pode tomar essa decisão. Por isso, é essencial manifestar para a família sobre o desejo e deixar claro que os familiares devem autorizar a doação de órgãos.

Existem dois tipos de doador: o doador vivo e o morto. O vivo pode ser qualquer pessoa que concorde com a doação, desde que esta não prejudique sua própria saúde. Este pode doar um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão. Pela lei, parentes até o quarto grau e cônjuges podem ser doadores vivos. Quando não houver parentesco, a autorização precisa ser judicial. Já os doadores falecidos são pacientes com morte encefálica, geralmente vítimas de catástrofes cerebrais, como traumatismo craniano ou AVC. Neste caso, a família necessita autorizar a doação.

Maria de Lourdes relembra momentos de seu processo de transplantação

Uma história de sofrimento, coragem e muita alegria
Maria de Lourdes Camilo Granado, atualmente com 61 anos, apesar de sempre muito cuidadosa com sua saúde, precisou de uma doação de órgão. Ela nasceu em Recife, mas com 13 anos foi morar em São Paulo. O tempo passou e o filho de Maria recebeu um convite para trabalhar aqui no Rio Grande do Sul. Foi assim que ela veio se estabelecer em Montenegro.

Maria conta que foi um longo processo para estabelecer no Estado, e, como era professora da rede pública de outro estado, precisou realizar exames médicos para entrar na rede gaúcha de ensino. “Eu fazia exames periódicos, porque lá o professor faz exames anuais. É uma regra do Estado, pois o professor tem que estar plenamente bem, sem transtornos físicos ou emocionais”, explica.

Para a surpresa de Maria, no exame realizado aqui em Montenegro em 2013, o laudo foi diferente do esperado: Insuficiência Renal Crônica. Ela, de primeira, não acreditou no resultado do exame. O médico, ainda assim liberou Maria para dar aulas, pois ela estava aparentemente bem, mas a condição era o tratamento ser iniciado com urgência. “De fato, a questão renal é silenciosa. Eu não sentia nada. Mas como combinado, fui me tratar”, comenta.
Maria explica que seu tratamento foi realizado todo na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. “A questão renal começa de um jeito e depois ela se apresenta de outro. Eu tava nova para fazer hemodiálise, mas já estava em um estágio avançado, correndo risco. Então eu fazia muitos exames e tinha acompanhamento”, detalha.

Ela conta que o tempo foi passando, ela se sentia bem e não imaginava o que estava por vir. “Quando descobri eu ainda achei que a coisa não fosse tão séria. Dei aula em 2013, 2014 e 2015, então pra mim eu tava de vento em popa”, confessa. No fim de 2015, Maria teve uma crise muito forte e a primeira internação, que durou 20 dias. “A médica me disse: Você está muito mal”, relembra. Ela conta que as taxas como de anemia, por exemplo, estavam todas desreguladas. “Agora a preocupação ali era eu sobreviver porque talvez não desse tempo nem de fazer a hemo”, sublinha.

Mas Maria não desistiu de seus compromissos com os alunos. Saindo do tratamento, voltou a dar aulas. “Eu fiz isso em uma situação precária. Já avisei aos alunos que se esforçassem, que passassem, pedi para que recuperassem a nota nessa oportunidade porque eu não ia ter condições de voltar”, conta.

Em janeiro de 2016 foi uma crise atrás da outra e, no mês seguinte, Maria foi para a Santa Casa “entre a vida e a morte”. Os médicos a alertaram de que era tão grave, que ela estava a ponto de ter uma parada cardíaca. “O rim já estava paralisando os outros órgãos do meu corpo. Porque lógico, ele não funcionando, compromete os demais”, explica.

Maria teve várias complicações no processo do acesso para a hemodiálise (a fístula) e permaneceu com o cateter por seis meses. “Foi uma luta dura, tentaram fazer a fístula umas quatro vezes e nenhuma funcionou, então eles tiveram que pegar a artéria central, que é interna e externalizar. Foi muito sofrimento”, pontua.

O transplante
No dia 27 de outubro de 2017, Maria recebeu a notícia do transplante, e por incrível que pareça, não esperou por muito tempo na fila. “Para realizar um transplante a gente tem que fazer um check-up por todo o corpo. Olhos, dente, ouvido, garganta, até mamografia. Tudo em minúcias porque tem que estar extremamente preparado já que só uma inflamação pode, infelizmente, levar o paciente até a óbito”, explica ela.

Assim, com tudo em dia, com apenas treze dias de espera, Maria poderia receber um rim, mas conta que não aceitou transplantar. “Não aceitei porque nós temos o direito de ver a condição do paciente, e esse, antes de falecer tinha diabetes. Aí eu já me preocupei. A diabetes é um fator de risco pros rins, então os dele já estavam meio judiados”, conta.

Após isso, por um equívoco, Maria ficou fora da lista para recebimento do rim do dia 27 de outubro de 2017 à 7 de março de 2018. Então, depois de voltar para a lista, por sorte ou muita fé, no dia 18 de março, Maria tinha outro doador, esse falecido de morte encefálica, no Paraná.

O transplante, ocorrido no dia 19, teve ótimos resultados, mas debilitou Maria por duas semanas. “Tive sinais de rejeição, porque, claro, a gente pega pro corpo algo que não é nosso, com certeza ele vai tentar expulsar a qualquer custo. Tomei muitos remédios, minha imunidade ficou lá no pé. Até um espirro podia me fazer mal”, relembra. A dor foi muito grande, mas há um sentimento que se sobressai: A alegria. “É a maior vitória que eu pude ter na vida”, pontua Maria.

 

Sentimento de gratidão influenciou para que Maria se tornasse doadora
Maria conta que pensou em desistir no início de tudo, mas que coragem, força de vontade e muita fé são essenciais. “De vez em quando eu me pegava preocupada porque eu pensava que podia ficar anos na fila, porque tem gente que fica 12 anos esperando. Eu ficava nessa ansiedade, mas sempre acreditei, sempre tive fé. Deus foi muito maravilhoso” comenta.

Ela é muito agradecida pela oportunidade que teve de quase renascer, e conta que mesmo sem ter conhecido o doador, o sentimento é de que de alguma forma, ele estava preparado para ajudá-la. “Meu doador está todo dia nas minhas orações, assim como a família dele. Eles me deram a vida. Não conheço essas pessoas, mas eu consigo sentir”, pontua.

Maria comenta ainda que após a cirurgia, os pacientes são aconselhados por psicólogos e psiquiatras para aceitação da nova fase, mas que ela não precisou de muito tempo. “Me enchi muito de esperança para receber esse rim. Eu não tive problemas de ter algo diferente no meu corpo, que não era meu. Eu me dei muito bem. Parece até que foi uma coisa já marcada, um trajeto que tinha que ser seguido” sublinha ela.

Toda a família de Maria sempre foi doadora, exceto ela, por vontade própria. “A gente vive aprendendo. Tu viu que coisa é a vida? Parece que foi pra me ensinar mesmo. Hoje eu posso dizer que eu sou doadora, tanto é que a primeira coisa que eu falei quando fui transplantar foi avisar, que caso eu não levantasse mais dali, era pra doar tudo que pudesse”, conta ela, emocionada.

Maria friza a importância de que haja a conscientização quanto à doação de órgãos e o quão importante o assunto é. “Posso afirmar que a melhor coisa que já fizeram e estão fazendo é o transplante. Em outros tempos com certeza eu não iria sobreviver, no grau que eu tava, eu não aguentaria muito tempo sem transplantar”, comenta.

Dentre tantas coisas que Maria queria poder dizer ao seu doador, a maior delas: “Muito obrigado.” “De coração, que deus acolha, porque o gesto dele, da família dele, foi uma coisa tão linda, tão maravilhosa que ele nem faz ideia de quão feliz ele fez alguém, que sou eu. E se hoje eu estou feliz, é graças a ele”, finaliza.

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