Transplantar um órgão pode ser a única expectativa de pacientes com doenças graves. Para o aposentado Perci Miguel Fernandes Lemos, 63, o transplante de rim representou a mudança completa na qualidade de vida.
Ele descobriu o problema renal quando o órgão já estava praticamente parado. Segundo o aposentado, ele tinha alguns sintomas, como coceira em todo o corpo e inchaço. “Tu pensa que é alergia, mas era problema renal. A gente só descobre que é problema no rim com exames de sangue”, afirma.
Quando realizou os exames específicos, os médicos já recomendaram que ficasse no hospital para colocar um cateter e poder fazer hemodiálise na mesma hora. “Já estava muito grave”, conta. A partir desse dia, Perci deu início a uma rotina de diálise todas as segundas, quartas e sextas-feiras, sempre durante a tarde. Também precisou mudar radicalmente a alimentação, para conseguir controlar os sintomas da doença renal.
Alimentos com potássio e sódio foram eliminados, porque, sem o funcionamento dos rins, o organismo não conseguiria filtrar e eliminar o excesso desses nutrientes. Mas isso não foi o que mais abalou o aposentado. “O pior de tudo foi ficar sem água. Eu chegava a sonhar que estava tomando água”, conta. O organismo de uma pessoa com doença renal retém o líquido, que precisa ser drenado na hemodiálise. Quando a pessoa toma água, essa drenagem se torna muito dolorida e pode fazer a pressão cair.
Após um ano de hemodiálise, Perci conta que os médicos da Nefroclin, em Montenegro, sugeriram que ele entrasse na fila do transplante. “Eu não quis. Você vê pessoas que tentaram e voltaram para a hemodiálise e isso assusta. Eu já estava acomodado com aquela situação de ir três vezes por semana no Hospital”. Somente após dois anos e meio de hemodiálise, é que ele começou a fazer todos os procedimentos para entrar na fila. Foram exames de todas as especialidades médicas, incluindo coração, visão e até na arcada dentária, para que o ingresso na lista de espera fosse aprovado.
Passaram-se três meses e meio até que, na madrugada de 11 de agosto de 2015, os médicos ligaram avisando que ele deveria ir até a Santa Casa de Porto Alegre para receber o rim compatível. “Era uma e pouco da manhã. Eu não acreditei. Achei que era um trote e desliguei. Então eles ligaram para a minha esposa e nós fomos lá”, relembra.
Apesar de complexa, a cirurgia durou pouco mais de duas horas e o restabelecimento rápido de Perci permitiu que ele ficasse internado apenas duas semanas. “Depois tem todos os cuidados. Eu fiquei quatro meses usando máscara. Cuido da alimentação até hoje”, diz. A principal mudança foi a água. Se antes de transplantar ele não podia ingerir o líquido, agora tem que tomar pelo menos dois litros por dia. “Se eu tiver um resfriado que seja, sei que preciso consultar o médico imediatamente”, ressalta, ainda, o transplantado.
Mesmo com tantas mudanças, a fístola (ligação feita no braço, para a realização da hemodiálise), continua intacta e bem cuidada por Perci. Ele sabe que, caso haja algum problema e ele precise voltar a fazer o procedimento, poderá utilizar aquela ligação. “Ela está pulsando e bem forte. Sei que se precisar, posso contar com essa ligação”.
A expectativa pelo transplante
O transplante de órgãos é considerado uma forma de tratamento, e não a cura total, já que envolve cuidados posteriores à cirurgia. Para muitas pessoas, o procedimento representa a única chance de sobrevivência.
Em casos de pacientes renais, como Perci Lemos, a função renal é substituída pela hemodiálise e o paciente acaba adiando o transplante. No caso dele, após ter entrado na fila, o órgão apareceu em pouco mais de três meses, enquanto ele planejava uma viagem à praia. “Eu estava vendo como faria, porque sabia que não ia poder ficar sem a hemodiálise. Então me ligaram falando que o rim estava me esperando”, recorda.
Em outros casos, no entanto, os pacientes podem criar uma expectativa tão grande em torno da cirurgia, que abrem mão dos planos, adiando-os para depois de ser transplantados. Isso não é recomendável, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos. “Dê preferência aos planos que possam ser, de fato, concretizados, com um começo, meio e fim e que estejam dentro do seu alcance. Agindo assim, você se sentirá mais satisfeito consigo”, orienta através de seu site.
Esse tipo de atitude, de acordo com a Associação, pode funcionar como um tratamento emocional durante o tempo de espera, fazendo com que o paciente sinta-se mais encorajado a dar continuidade aos procedimentos. “Outro erro a ser evitado é descuidar de seu estado físico. É comum que alguns pacientes digam que hoje cometem alguns abusos, mas que depois da cirurgia ‘tudo vai mudar’”, alerta a Associação.
Cada problema de saúde exige cuidados específicos, como alimentação prescrita por nutricionista, atividades físicas e o controle de medicamentos. Ao descuidar desses pontos, o paciente acaba fragilizando seu organismo e reduzindo as chances de ter um transplante bem sucedido. “Depois de um tempo, todas as minhas ações e vontades começaram a ser perguntadas aos médicos”, conta Perci.
O que acontece após autorizada a doação?
O hospital notifica a Central de Transplantes sobre um indivíduo em morte encefálica (potencial doador) ou com parada cardiorrespiratória;
A Central de Transplantes pede confirmação do diagnóstico de morte encefálica e inicia os testes de compatibilidade entre o potencial doador e os potenciais receptores em lista de espera. Quando existe mais de um receptor compatível, a decisão de quem receberá o órgão passa por critérios tais como tempo de espera e urgência do procedimento;
A Central de Transplantes emite uma lista de potenciais receptores para cada órgão e comunica aos hospitais (equipes de transplantes) onde eles são atendidos;
As equipes de transplante, junto com a Central de Transplante, adotam as medidas necessárias para viabilizar a retirada dos órgãos (meio de transporte, cirurgiões, pessoal de apoio, etc.);
Os órgãos são retirados e o transplante é realizado.
No caso de morte por parada cardiorrespiratória, após avaliação do doador por critérios definidos, os tecidos são retirados e encaminhados para bancos de tecidos.
FONTE: Ministério da Saúde
Tratamento após o transplante
Logo após a cirurgia, o paciente fica na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e, posteriormente, será internado na enfermaria. O tempo de internação varia de acordo com a recuperação do transplantado. “Na fase pós-transplante é importante ter em mente que o organismo leva um tempo para se recuperar. É um momento no qual seu corpo precisará se acostumar com o novo órgão e com os remédios (imunossupressores) que você passará a usar rotineiramente”, explica – em texto – a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos.
Um dos medicamentos que o paciente precisa continuar tomando, em alguns casos de forma permanente, é o imunossupressor. Eles são necessários porque, ao ser implantado um novo órgão, a tendência é que sejam fabricadas anticorpos que “defenderão” o organismo daquele corpo implantado, podendo causar a rejeição. O medicamento ajudará a “confundir” o sistema imunológico para que o órgão não seja rejeitado.
O efeito contrário disso é que o organismo fica mais suscetível a infecções, exigindo mais cuidados do transplantado. Aos poucos, no entanto, o paciente pode retomar sua vida normalmente, inclusive voltar a trabalhar e praticar atividades físicas.
A consulta regular ao médico para acompanhamento da progressão do tratamento também é fundamental.
Como funciona a lista de espera
A lista de espera é organizada por Estado. Hoje, o Rio Grande do Sul tem cerca de 1.200 pessoas aguardando um transplante, de acordo com os dados do Registro Brasileiro de Transplantes. No Brasil, Há 33 mil pacientes na fila. A taxa de doadores efetivos aumentou 11,8% no primeiro semestre desse ano, passando de 14,6 por milhão de população (pmp) para 16,2 pmp. A meta é 16,5 pmp.
De acordo com a enfermeira especialista em doação de órgãos, do hospital Dom Vicente Scherer, na Santa Casa de Porto Alegre, Kelen Machado, não há como precisar o tempo para que um paciente consiga o órgão. “Depende de termos doadores compatíveis. Muitos, infelizmente, nem chegam a conseguir o transplante, porque morrem antes de surgir um compatível”, lamenta. “Por isso a importância de as pessoas manifestarem sua vontade de doar. Quanto mais doadores houver, maior a chance daqueles que estão aguardando uma nova chance”.
Quando é constatada a morte encefálica, imediatamente a equipe do hospital conversa com a família sobre a doação. A legislação brasileira prevê que a autorização pode ser feita por cônjuge ou familiar até segundo grau. Após, os órgãos são retirados e é feito o teste de compatibilidade com os pacientes que aguardam o transplante.
A prioridade sempre é a lista do mesmo Estado do doador. Caso não haja alguém compatível no Rio Grande do Sul, é notificada a central nacional e se faz buscas em outros Estados. “A prioridade é a localização mais próxima, para que haja tempo hábil para que o paciente receba o órgão”, explica Kelen. O tempo máximo para o transplante pode variar entre quatro horas para um coração até 36 horas, no caso de rins. “O ideal é não esperar esse tempo porque a chance de rejeição aumenta se o órgão permanecer parado fora do corpo”.
Quais os riscos de um transplante de órgãos?
Além dos riscos inerentes a uma cirurgia de grande porte, podem ocorrer: infecções (como consequência do uso de imunossupressores); rejeição do órgão transplantado, que pode ser hiperaguda (situação muito grave, podendo levar a necessidade da realização de um novo transplante) ou tardia (mais fácil de ser tratada com medicamentos que diminuem a atividade do sistema imunológico); efeitos colaterais das drogas imunossupressoras, como hipertensão arterial, linfomas, tumores de pele e toxicidade do sistema nervoso, entre outros.
Familiares ainda negam a doação dos órgãos
Segundo a enfermeira Kelen Machado, Montenegro é onde existe a maior rejeição à doação de órgãos, por parte dos familiares. “A gente não conseguiu identificar, ainda, quais os principais motivadores dessa região, em específico, mas queremos fazer um trabalho aí, para incentivar a doação”, diz. “Já teve casos [de doação] no HM e Unimed, mas ainda observa bastante rejeição. A família entende a morte, mas não autoriza a doação”, explica a enfermeira.
Cerca de 1% de todas as pessoas que vão a óbito são doadoras em potencial. Dentro desse número, 43% das famílias negam a doação, alegando diversos motivos, entre eles, o desconhecimento da vontade do falecido em ser doador.
Um dos medos existentes, segundo ela, é em relação aos cortes no corpo para a retirada do órgão. “A doação de órgãos é como se fosse uma cirurgia no abdome. O doador é levado para a cirurgia, e quando é feita a retirada. Depois, é feita uma prótese para preencher o espaço, suturado e entregue para a família em perfeitas condições de realizar o sepultamento”.
Ainda durante o processo, toda a equipe do plantão fica em contato com a família e vai atualizando-os sobre o que está acontecendo com o familiar falecido.
Como ocorre adoção
A doação de órgãos de pessoas falecidas somente acontecerá após a confirmação do diagnóstico de morte encefálica. Geralmente, são pessoas que sofreram um acidente que provocou traumatismo craniano (acidente com carro, moto, quedas etc.) ou sofreram acidente vascular cerebral (derrame) e evoluíram para morte encefálica.
Após a confirmação da morte encefálica, é necessário uma corrida contra o tempo, iniciada ainda dentro do hospital, para que os órgãos não deixem de funcionar até ser transplantados para o organismo do receptor. Caso a pessoa morra em casa, apenas as córneas podem ser doadas. Nesse caso, a declaração de óbito deve ser providenciada e imediatamente comunicada a intenção de doar à Central Estadual de Transplantes. A Central acionará um Banco de Tecidos Oculares, cujo profissional fará todos os procedimentos necessários à retirada da córnea, inclusive a reconstituição do corpo.Caso a morte tenha decorrido de causa não natural, o corpo vai ao IML para ser submetido à necropsia.
Para ser doador em vida, é necessário ser parente de até quarto grau ou cônjuge do receptor, com compatibilidade sanguínea. Não-parentes só conseguem realizar a doação após medida judicial. Rim, medula óssea e parte do fígado ou pulmão podem ser doados em vida. O doador, nesse caso, deve ter mais de 21 anos e boas condições de saúde. A doação ocorre somente se o transplante não comprometer suas aptidões vitais.