Família de jovem que morreu em acidente incentiva a doação de órgãos
O sofrimento por perder um filho é uma das dores mais intensas que uma pessoa pode sentir. E num momento tão difícil, em que uma jovem de apenas 25 anos perdeu a vida após um acidente, é uma decisão nobre da família optar pela doação de órgãos, já que dessa forma poderá salvar outras vidas. E foi assim com a família de Sélia Carolina Krahl, sepultada em Montenegro na última sexta-feira, dia 9.
Sélia faleceu três dias após a colisão entre duas motos, ocorrida na Estrada Selma Wallauer, do bairro Faxinal, na noite de sábado retrasado. Ela foi inicialmente encaminhada ao Hospital Montenegro (HM) e depois removida ao Pronto Socorro (HPS) de Canoas, onde foi diagnosticada a morte encefálica. “Sempre foi uma decisão da família, de sermos doadores, caso acontecesse algo. Infelizmente aconteceu”, diz a mãe de “Selinha”, Carolinha Krahl. “Quando a equipe de transplante chega e pergunta sobre quais órgãos podem ser doados, é um momento muito difícil. Mas o consolo que isso traz não tem como descrever. É um alívio para o coração de a gente saber que a vida dela terá um seguimento. É a única coisa que conforta”, afirma.
Carolina lembra que sua avó, também Sélia, que morava em Santos Reis, tinha um coração muito bom. “Ela sempre gostava de ajudar as pessoas. Isso ela passou para os filhos, netos e bisnetos. E não vai ser agora que terá fim. A maior herança que podemos deixar para alguém é amor. É se doar, de alguma maneira. E essa parte foi muito bem feita em relação à Selinha. Ela aprendeu muito bem a se doar, espalhar amor”, declara a mãe. “É a maior prova de amor que existe. Decidir por doar os órgãos de quem tu tanto ama para dar continuidade à vida de outra pessoa. Não existe ato maior de amor e num momento de tanta dor e sofrimento se ter essa força e consciência. Se todas as pessoas fizessem a sua parte, quanto sofrimento a gente evitaria”, complementa.
Selinha era dedicada à causa animal, principalmente aos cavalos, pelos quais era apaixonada. Ela ajudava a socorrer cavalos vítimas de acidentes e maus-tratos. Ótima motorista, tinha vencido corridas de moto. E estava concluindo a carteira de habilitação para ser motorista de ônibus. Sempre prestativa, trabalhava como cuidadora. E estava sempre cercada de amigos. Deixou um filho de 7 anos, além de irmãos, avós, demais familiares e muitos amigos.
No acidente, por volta de 20h de 3 de junho, ela foi atingida por outra motocicleta e na queda sofreu traumatismo craniano. O condutor da outra moto também se feriu, mas com menos gravidade. Conforme a Brigada Militar, ele estava com o direito de dirigir cassado e a moto em situação irregular. Além disso, testemunhas relataram que ele dirigia a moto com o farol apagado.
Carolina preferiu não falar sobre as circunstâncias do acidente, citando que a investigação cabe a Polícia. A mãe da jovem pediu ao jornal que fosse feita a reportagem sobre a importância da doação de órgãos, como forma de incentivar as famílias a doarem, já que milhares de pessoas aguardam por transplante. A situação piorou com a pandemia, com uma fila de mais de 39 mil pessoas no Brasil esperando a doação de órgãos.
Apoio psicológico
A família de Sélia destaca o apoio psicológico recebido. “Uma psicóloga ficou à disposição da família durante o dia e a noite. Tínhamos acesso livre à Selinha para se despedir enquanto estava entubada, já com a confirmação da morte cerebral”, lembra Carolina, salientando que foram dadas todas as orientações e auxílio. Recorda que foi feita uma entrevista dos profissionais e decidido pela doação total dos órgãos, incluindo até mesmo a pele, beneficiando banco de queimados. Foi feita uma avaliação dos órgãos e em trinta dias uma equipe deve fazer contato com a família para informar quantas pessoas serão beneficiadas, o sexo e idade, sem revelar a identidade.
Quanto à demora para a retirada dos órgãos até o início dos atos fúnebres, Carolina diz que várias pessoas perguntavam quanto ao começo do velório e enterro. “Isso é tão irrelevante diante da grandeza de poder estar salvando vidas. Algumas horas a mais não faz diferença alguma. As pessoas têm que ter consciência que é por uma causa muito maior”, entende. “Sugiro que, quem tiver que passar por esse tipo de situação, que tenha muita calma e que seja muito firme. E agora é vida que segue e lembranças ótimas desta menina”, conclui a mãe de Sélia, sem conter a emoção.
A psicóloga Carla Giuliani, do Hospital Montenegro (HM), que integra a Comissão intra-hospitalar de doação de órgãos e tecidos para transplantes (CIHDOTT), cita que o grupo é formado por médico, enfermeira e psicólogo, justamente para acompanhar todo o processo, seguindo as etapas do protocolo de morte encefálica e doações. “A equipe acompanha os familiares, recebendo acolhimento psicológico, independente da doação ou não. É importante que os familiares recebam todas as informações. O médico informa sobre resultado de testes e prognósticos. E o psicólogo presta assistência e toda atenção, ficando próximo da família”, explica.
Carla elogia a atitude da família de Sélia, que pediu para divulgar e incentivar sobre as doações de órgãos. “Temos contatos de famílias doadoras que viraram ativistas da causa”, relata. “Procuramos passar informações para a comunidade, através de palestras e capacitar sobre o tema. Normalmente as famílias de doadores transmitem a gratidão de poder estar ajudando, salvando vidas e melhorando a qualidade de vida das pessoas”, completa, ressaltando a atitude de solidariedade, de numa situação traumática, de perda e dor, conseguir ter um ato de amor de doar os órgãos do familiar.
Para a psicóloga, é importante a família entender que a retirada dos órgãos só vai acontecer após ser diagnosticado o óbito, ou seja, depois de ter falecido. E que então, com a morte cerebral, pode vir a ser um doador de órgãos.
Vida que segue
Durante a Semana de Enfermagem do HM, no mês passado, ocorreu uma palestra sobre doação de órgãos. A coordenadora do projeto Cultura Doadora, Glaci Borges, ressalta que desde o início do trabalho da comissão, em 2018, aumentou em 62% a captação de órgãos na região, passando de zero para 28, resultando em 17 transplantes. E que esse número pode aumentar graças à consciência de famílias como a de Sélia. Ela ressalta o ato de Carolina, de uma mãe conseguir dizer sim para a doação. “Já era uma família doadora, que tem as informações. Isso dá um alívio na hora da decisão”, diz, sobre a importância de a família conversar sobre o assunto. Lembrou ainda do suporte e acolhimento para a família, que não deve ser pressionada, tendo tranquilidade para decidir e ter o tempo necessário para o processo. “Só de saber que várias pessoas seguem vivas com os órgãos doados, é um presente para quem recebe e também para quem doa.
Glaci diz que podem ser doados desde pulmão, coração, rim, fígado e pâncreas. Lembra que como são dois rins e pulmões, pode beneficiar mais de uma pessoa. Também tecidos, córneas, válvulas cardíacas e pele. “Todos os órgãos são retirados por cirurgiões, como qualquer outra cirurgia”, esclarece, citando que não fica nenhuma evidência para os atos fúnebres. “Foi lindo o depoimento dessa mãe”, diz, sobre a manifestação de Carolina, frisando que vidas são salvas e com isso a dor da perda é amenizada. “Doação de órgãos é sim vida que segue”, conclui.