A educação e o carinho pelo próximo como transformadores de vida

Após abandonar a escola e passar por violência doméstica, Vera Lopes venceu através do estudo

Quem conhece a sorridente e bem-humorada Vera Maria Lopes, 63, pode não saber das cicatrizes que ela carrega. Hoje professora e assistente social, a montenegrina é referência de profissional, mãe e liderança, mas para isso teve de ultrapassar diversas barreiras. Para inspirar outras pessoas a vencerem e terem uma vida diferente da imposta pelo contexto social, Vera compartilha conosco a sua trajetória.

Filha de Maria Josefina André Lopes e Manoel Paulino André Lopes, Vera cresceu na Tanac entre os anos 50 e 60. Com os pais trabalhando o dia todo na empresa, ela e os cinco irmãos aprenderam a uns cuidarem dos outros. “A minha irmã – mais velha – de manhã cuidava da gente e de tarde ia pra escola, e aí meu irmão ficava com nós. Com sete anos eu comecei a criar a minha irmã mais nova”, conta.

Somente com a terceira série, realizada no então Grupo Escolar Tanac, Vera foi aos 10 anos de idade trabalhar na casa dos pais de uma professora. Mesmo com a falta de maturidade, a pequena tinha como objetivo guardar um dinheiro para si, e com a outra parte ajudar a mãe em casa. De lá, Vera seguiu trabalhando em casas de família, chegando a ir morar em Porto Alegre para assumir o posto de “doméstica”. “Era o que sabíamos fazer”, diz.

Desde criança, Vera também teve de conviver com o alcoolismo dos pais e a violência doméstica. “Eles bebiam todos os dias. A mãe bebia com o pai, e segundo ela era tanto sofrimento que ela bebia para não sentir nada. Ai ele arrebentava ela a pau, saía sangue, mas ela não sentia”, comenta.

Para ela, as memórias ainda são claras e marcantes. “Eu me criei vendo o pai bater muito na minha mãe, e nada acontecia, ela ficava toda machucada e de noite estava tudo igual. Muitas vezes ela não podia trabalhar, porque estava muito roxa, e eu me criei naquele meio”, relata.

Segundo Vera, a situação em casa a afetava muito, mas uma repetição da história acabou ocorrendo em sua vida. “De tanto eu odiar meu pai por bater na minha mãe acabei com um homem igualzinho, alcoólatra e que me batia”, declara.

“O que fez com que eu tivesse uma evolução nessa vida foi a educação. Então, não deixem de estudar”

Mudança de vida
A reviravolta na história de Vera teve início quando resolveu voltar a estudar para dar um futuro melhor para os filhos, mas o caminho não foi fácil. Casada desde nova e com poucas perspectivas, a jovem de 26 anos viu no estudo a oportunidade de ganhar mais dinheiro. “O meu ex-marido (na época eram casados) não queria. Mesmo ele dizendo que não, eu fui para a escola”, relembra. Samandra Maria quadros e Antonio Carlos Quadros, seus filhos, eram os combustíveis para a sua luta.

Vera se redescobriu nos estudos

Ainda trabalhando de doméstica, Vera conseguiu terminar o Ensino Fundamental, através de supletivo. Até tentou finalizar o Ensino Médio, mas por não conseguir acompanhar desistiu – temporariamente. A montenegrina conseguiu então um emprego na Prefeitura, onde foi designada a trabalhar na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae).

Trabalhando na cozinha e em serviços gerais, foi na Apae que teve seu ponta pé inicial. Através do incentivo e ajuda da então diretora, Rose Laranjeira, ela fez um curso para trabalhar com pessoas com deficiência, subindo então de cargo. Mas os sonhos não cessavam. Vera queria a casa própria e para isso resolveu sair do emprego. “Com o dinheiro que saí de lá comprei as telhas, comprei tudo”, fala. A tão sonhada casa foi feita no bairro Germano Henke, onde morou por mais de 30 anos.

Com o impacto do falecimento de sua mãe, Vera não conseguia fazer mais nada, e com a ajuda de uma irmã conseguiu se reerguer. “Ela foi na minha casa, escolheu o melhor vestido que eu tinha, escolheu um sapato de salto e fez eu tomar um banho e colocar as roupas. E me levou para o Centro para arrumar trabalho para mim. Ela virou a minha mãe naquele momento”, relembra.

Vera conseguiu um emprego na antiga Caixa Econômica Estadual, e para isso teve de se matricular no Ensino Médio. Em um dia de sorte, Vera atendeu Angela Klaus, então diretora da escola Dr. Paulo Ribeiro Campos, o Polivalente. “Eu perguntei a profissão dela e ela disse professora, e na hora eu disse que queria ser, e ela falou: sai daqui guria, eu te pago tudo”, conta. Vera conseguiu uma bolsa de estudos no Instituto de Educação São José (IESJ) para ela fazer o magistério e para os dois filhos estudarem, e ainda recebeu de Angela uniforme e materiais. “Eu tive muitos anjos na minha volta, é incrível, se parar pra pensar eu tenho até vontade de chorar”, completa.

Vera abdicou do trabalho para estudar e se tornar professora, e com isso as dificuldades em casa também cresceram. Aos 36 anos, ela conseguiu terminar o magistério, após passar por violência psicológica e física do ex-marido. Ela foi dar aulas então no Colégio Estadual Ivo Bühler (Ciep), onde relata ter aprendido muito com a sua vivência.

Luta pelos direitos
Se engana quem pensa que Vera estava satisfeita com a sua situação. Observando as dificuldades do seu bairro, ela se candidatou e foi eleita líder comunitária do Germano Henke, onde depois foi reeleita. “Eu queria lutar pelos direitos daquela comunidade”, explica. Através dos esforços dela e de colegas, a Associação foi criada, e muitos outros avanços para o bairro conquistados.

Indagada por uma amiga sobre se tornar conselheira tutelar, Vera foi pesquisar o que exatamente era essa profissão, e se identificou na hora. Em 1995, ela e uma amiga batiam de porta em porta pedindo votos, e em 1996 ela foi eleita conselheira tutelar de Montenegro com mais de 1.800 votos. Como conselheira no Município, Vera foi eleita três vezes, passando ao todo 12 anos. Ela também foi conselheira – mais recentemente – em Maratá.

Em um dos seus mandatos, uma amiga lhe falou que ela ainda seria assistente social, e assim foi. “Eu fiz (o vestibular) com a certeza que não tinha passado, capaz que eu ia passar né. Na segunda-feira eu descobri que eu tinha passado”, fala. Com a ajuda de “anjos”, Vera conseguiu se matricular na Universidade Ulbra e passar pela graduação, mesmo com sacrifícios.

Vera e família durante uma confraternização

Entusiasmada com a faculdade, Vera chegou a idealizar a ONG Anjos de Luz, na Germano Henke. O projeto social oferecia aulas de informática, esporte, auxílio, etc, para crianças e adolescentes no contraturno escolar.

No dia 4 de novembro de 2010, Vera se formou oficialmente em Serviço Social. Mais uma vez recebeu o apoio de um amigo, e com isso pode realizar a sua festa de formatura. “A festa foi maravilhosa, linda”, diz.

No mesmo período ela descobriu a traição de seu ex-companheiro, e aquilo para ela foi o ponto final. Indagada porque não havia terminado com o relacionamento antes, a resposta é a mesma de diversas outras mulheres. “Eu tinha uma filha, um filho, e pensava que era tão jovem que daqui a pouco eu estaria arrumando um homem, e esse homem poderia mexer com eles. E para onde iríamos? Então eu pensava em me sacrificar, sofrer, mas não iria acontecer nada com eles”.

Entretanto, Vera relata que mudou a sua mentalidade e alerta que as mulheres devem sim denunciar e largar seus agressores. “Que isso sirva de exemplo para as pessoas. A mulher não precisa mais passar trabalho, ela bota os filhos dela na creche, aluga uma casa. Chega de passar trabalho, quantos feminicídios acontecem, porque elas ainda querem acreditar, que nem a dita Vera acreditou, que é possível sim conservar a família”, fala. Após isso, Vera ainda trabalhou como assistente social na Retiro Comunitário Reabilitação Ocupacional (Recreo), foi coordenadora do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) de Montenegro e professora em Brochier.

“A gente sente, ninguém precisa dizer”
Além das dificuldades sociais e violência doméstica, Vera também teve de ultrapassar outra barreira: o preconceito. Ela conta que durante a sua vida foi muito julgada, e teve o seu potencial colocado à prova diversas vezes. “Eu lembro de uma amiga minha que ela disse pra mim no Ensino Fundamental: ‘Vera eu tenho até pena de ver tu estudando, porque tu sabe que tu não vai conseguir nada com esse teu estudo né, nem que tu te pinte de cal’. De um jeito ou de outro eu iria conseguir algo nessa vida”, afirma.

Ela relata que diversas foram as situações que sofreu preconceito, chegando a entrar em depressão. “Em Montenegro sempre foi muito mascarado. Eles não te agrediam direto. Mas de falar: ‘a Vera, como tu é linda, tu é negra de alma branca’”, diz ela.

Em sua atuação como conselheira tutelar, Vera já sofreu caso de injúria racial. Segundo ela, uma pessoa colocou em um grupo do Whatsapp – por engano – um xingamento de macaca para ela, mas que após avaliação da justiça, nada foi feito. “Eu aprendi nessa minha jornada como mulher negra que nós não podemos parar, mesmo que as pessoas façam pouco caso de nós, como aconteceu comigo várias vezes, não podemos deixar que isso nos diminua, que a gente se sinta fragilizado, porque somos negros. Ao contrário, eu tenho o maior orgulho de ser negra e de poder dizer que eu não parei no meio do caminho”, concluí.

Agora é só felicidade
Separada, Vera foi incentivada pelos filhos de ir na tradicional festa de São João, na Macega, em Maratá, para se divertir. Lá, ela conheceu seu amado, Renato Ari Krug, com quem é casada há mais de 9 anos. “Com ele eu sou tratada com o respeito que uma mulher merece, e que bom que todas as mulheres fossem felizes como eu sou”, declara.

Vera e seu companheiro Renato

Valorizando a família em primeiro lugar, Vera adotou de coração os filhos de Renato: Henrique, Miguel e Nicolas Krug, que agora se somam aos filhos, netos e bisnetos de Vera. “Hoje eu agradeço a Deus pela minha vida, por dormir e acordar em paz”, fala.

Em 2021, Vera explica que tirou um ano para descansar e aproveitar o esposo e a família, mas que para o próximo ano já planeja retornar à pós-graduação e ao trabalho. “Foi bom ficar em casa, mas eu acho que eu tenho tanto saber adquirido, guardado, que eu não posso deixar simplesmente assim”, diz.
Sobre 2022, e as expectativas que geralmente colocamos em um novo ano, Vera deixa um recado. “Através da experiência que eu tive, é isso que eu aconselho a todos, estudem! E não tem idade para estudar. A mulher que estiver em casa e pensar que esse é o caminho, procure, vai estudar, e vá ser o que vocês quiserem ser”, completa.

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