Um mês depois da greve, luta dos caminhoneiros continua

Um dos principais personagens do movimento em Montenegro, João Rosa relembra os dez dias que passou em manifestação

Com 45 anos de idade, João Rosa é caminhoneiro autônomo há 27. A profissão vem de família. É a mesma do pai e também do avô. Nascido no bairro Timbaúva, João acabou no centro da paralisação dos caminhoneiros em Montenegro. Mesmo negando o rótulo de liderança local, muitas das decisões e das propostas que vinham de Brasília e eram debatidas entre os caminhoneiros Brasil afora chegaram à cidade através dele. Um mês depois do fim do movimento, e com algumas das “conquistas” ainda sendo tema de luta, João relembra os dez dias em que passou envolvido com uma greve que impactou o país inteiro.

JOÃO Rosa garante que nunca houve a intenção de derrubar o governo. CRÉDITO: Arquivo/Jornal Ibiá

“Quando o pessoal tava ali na rótula da Cinco de Maio (no dia 17 de maio), eu não tinha chegado de viagem ainda, mas eu já sabia que ia ter a paralisação”, lembra. “Eu sou filiado a uma cooperativa de transportadores de Três Cachoeiras, que é tipo uma associação. Toda vida eu fui ligado a eles e lá eles já estavam paralisados. Eu cheguei e, na segunda-feira (21), eu tava no posto, mexendo nos pneus, porque eu sabia já que não iria mais viajar. Eu tava com uns amigos meus, também da profissão, e a gente pensou em ir dar uma olhada ali na Taqi (onde já ocorriam manifestações, principalmente de representantes do meio rural”, recorda.

Naquele momento, ninguém estava sendo parado ainda. “Era mais agricultor mesmo. Daí eu perguntei pro cara o porquê de eles não estarem atacando ali e eles disseram ‘ah, não é o nosso foco. O nosso negócio é mais o protesto’. E eu já disse ‘olha, vamos ter que começar a atacar. Não adianta ter protesto se nós não começarmos a trancar alguma coisa’. Nisso eu pulei no meio da pista e começamos a atacar os caminhões que passavam. Começou o movimento ali”, coloca.

A proporção da paralisação acabou pegando a todos de surpresa. “Nem a gente pensava no tamanho que aquilo ia tomar. Foi algo que foi se criando”, aponta João. “Quando nós começamos a trancar a passagem dos caminhões, já veio a Polícia e deu uma ordem de que não se podia deixar os caminhões todos no acostamento. Como Montenegro não tem infraestrutura de postos grandes, nós deixávamos até as 6 horas da tarde e depois liberávamos. E na faixa (pela Taqi), nós trancávamos por uma hora e íamos liberando.”

Na terça-feira (22), João e os companheiros acordaram cedo e começaram a trancar a rodovia para os veículos de carga. O movimento e os caminhões já estavam todos no ‘trevo do Shell’ (rótula entre a Rua Buarque de Macedo, a ERS-240, a RSC-287 e a BR-470). “Daí chegou o comando do BOE (Batalhão de Operações Especiais) de Porto Alegre também dizendo que não podia ficar no acostamento. Tentavam, de toda forma, nos desmobilizar”, explica.

Persistentes, foi na quarta-feira (23) que os caminhoneiros reforçaram o movimento. “De manhã, na quarta, nós voltamos e foi quando a gente colocou os caminhões na rodovia federal, que daí a Polícia Rodoviária Estadual não ia incomodar mais. Só que, às 9h, chegou a Polícia Rodoviária Federal e disse que não podia deixar no acostamento também. Aí eu pedi um tempo pra poder organizar os caminhões. A gente colocou nos postos e lá na Antártica (rótula com a Rua Osvaldo Aranha). Mas, nesse meio tempo, veio um oficial de Justiça pra tentar desbloquear”, diz o motorista.

João explica que foi nesse dia que a mobilização ganhou corpo. “Eu acho que a gente colocou uns 600 caminhões pra lá e pra cá. A gente deixava os caminhões nos postos e só de tarde se liberava. Todo mundo foi aderindo, parando. Acho que, em Montenegro, nunca tinha acontecido um negócio desses”, recorda o motorista.

Desde abril já se falava em paralisação da classe
João Rosa conta que não foi de uma hora para a outra que o movimento surgiu. “Nós sabíamos que ia ter paralisação desde abril, porque não tinha mais condições de a gente rodar”, revela. “Eu tô há 27 anos em cima de caminhão e sempre foi ruim, mas a gente ia ajeitando. Só que chegou um ponto em que não deu mais. Não interessava quem tem um, dois, dez caminhões. A matemática é uma só e o óleo diesel subia todo dia.”

O movimento dos caminhoneiros acabou se destacando por – ao contrário do que se vê com outras categorias grevistas, como os professores, por exemplo – ter conseguido a adesão de todos, o que reforçou a causa. Apesar dos relatos de alguns motoristas contrariados em ficarem presos nos postos, João destaca que foram as condições de trabalho, com a realidade do dia-a-dia dos motoristas, que deram força à greve.

“Um professor ou um funcionário público são bem diferentes da gente. O ‘deles’ tá garantido todo mês. Nós não. Nós temos que garantir o nosso sustento dia após dia e por isso que todo mundo agarrou junto. Motorista de caminhão fica na beira de um porto por dez dias no meio dos ratos. Fica 4, 5 dias na frente de um terminal esperando pra carregar. Ele convive com ladrão, com drogado, com tudo o que é tipo de gente”, salienta.

Na opinião do motorista, o sujeito tem que ser ‘pau-ferro’ para ser caminhoneiro. “Nós estamos cansados de ficar, às vezes, 15 dias sem carne em algum lugar. Eu te digo uma coisa: se tivesse que aguentar por mais dez dias ali na paralisação, nós tínhamos aguentado”, assegura.

Um movimento sem líderes
“Aqui, a gente procurou mobilizar todo mundo. Escolhemos pontos estratégicos da cidade, na Taqi, no Shell, em Campo do Meio, no Faxinal, na Antártica e na rótula da Unisc. E a gente se falava: ‘oh, tem que levar tantos caminhões pra lá ou trazer tantos pra cá’. Mas não tinha ninguém de líder”, garante João Rosa.

O caminhoneira destaca o apoio da população, ao lembrar que empresas e conhecidos faziam doações de alimentos para os motoristas paralisados. Inclusive, alguma coisa foi repassada para entidades carentes da cidade. Havia ainda alguns acordos, como um com a Vibra, liberando a passagem de ração para que os animais da empresa não morressem.

Os familiares frequentemente iam visitar os pontos de paralisação para demonstrar seu apoio à mobilização. Isso com maior volume na Antártica e menor no Shell. “Lá no Shell era muito mais tumultuado e, às vezes, dava um pouco de medo. Todo mundo tinha medo de a Polícia chegar ali e baixar o ferro”, conta o caminhoneiro.

Também faltava tempo para socialização. “Era uma correria,que ‘tá louco’. Era uma tensão. Todo mundo naquele negócio de que podia terminar ou sem saber no que ia dar. Vinha acordinho dali, acordinho de lá. E também começaram alguns abusos, como uns caras querendo sair de madrugada pra poder fazer entregas. A gente correu bastante”, diz.

Mesmo reconhecido como um dos principais interlocutores da categoria, João nega ter havido uma relação de liderança no movimento, tanto local, quanto nacionalmente. “É que eu dei oportunidade para muitos motoristas aqui dentro de Montenegro e o pessoal me conhece”, afirma. “O município aqui não tem uma grande transportadora, então tem pessoas com 10, 12 caminhões e ainda se consideram autônomos. Aí dá esse entrosamento. Vocês não têm dimensão, mas os motoristas de Montenegro são muito respeitados nas estradas”, garante João.

Paralisação terminou, mas nem todas as reivindicações foram atendidas

com os caminhões parados em praticamente todas as rodovias do país, os brasileiros enfrentaram o desabastecimento

O montenegrino João Rosa assegura que ninguém tinha em mente derrubar governo. “No domingo (27), às nove horas da noite, nós já sabíamos que o acordo com o governo estava feito. Mas nós não podíamos desmobilizar porque faltavam as medidas provisórias. A gente deixou mobilizado até o momento em que elas foram publicadas no Diário Oficial”, relata.

Ele lembra que a publicação saiu na quarta-feira (30). “Eram 10h e nós já podíamos nos desmobilizar. Um das coisas que eu sempre falei era seguir Três Cachoeiras. Quando lá abrisse, terminava aqui também. Lá eles estavam com mais de 3 mil caminhões dentro da cidade, então não tinha porque nós aqui seguir batendo boca. Assim foi feito”, pontua João.

Apesar do movimento terminado, algumas das reivindicações não foram integralmente atendidas. O desconto de 46 centavos no valor do diesel para o consumidor final, por exemplo, não ocorreu. “Foi um cálculo errado do governo, que não colocou o percentual que vai de biodiesel no diesel. O desconto fechou em R$ 0,40, R$ 0,41. Em Montenegro, eu pagava R$ 3,62 e tô pagando R$ 3,23”, aponta o motorista. O preço fica congelado até o fim de julho.

A principal polêmica, no entanto, gira em torno da tabela de fretes e do piso mínimo instituído que, apesar de estar valendo, tem resistência de quem paga. Com um valor mínimo tabelado, há relatos de caminhoneiros que não conseguem ser contratados. “As grandes empresas já estão pagando a tabela, mas existem os pequenos que têm apresentado resistência. Todo mundo questiona esse piso. Falam que vai encarecer os produtos e é claro que vai. O salário já não é tabelado e tem um piso? A gente também tem que ter esse mínimo e não tinha nada que regulasse. Muitos não querem pagar, principalmente os da agricultura”, coloca João. Essa é uma reivindicação antiga da classe.

No fim, segundo o caminhoneiro, este custo extra trará benefícios. “Essa diferença vai para todos os setores que ficam em volta do caminhão. Para borracharia, elétrica, oficina. Esse dinheiro vai fomentar todo o resto e vai voltar para a economia. Era um valor que faltava até para fazer uma manutenção preventiva”. A discussão foi parar no Superior Tribunal Federal e originará uma audiência pública em agosto. “Nós estamos em estado de greve ainda. De prontidão. Se cair o piso mínimo, a gente paralisa de novo”, finaliza.

As negociações em Brasília e a polêmica intervenção militar

Polêmica reivindicação por intervenção militar foi, segundo João, um escudo para defender o movimento. CRÉDITO: Arquivo/Jornal Ibiá

Quando as paralisações começaram a impactar fortemente o país – impedindo o abastecimento de diversos itens e prejudicando os serviços – o governo federal tentou uma primeira rodada de negociações, que chegou a resultar no anúncio do fim do movimento no dia 24. Esse encerramento não se concretizou. “Nesse início, foram lá dois, três caras dizendo que eram líderes do nosso movimento. A gente sabia que eles não eram”, lembra João.
Ele conta que, localmente, representava os caminhoneiros em Brasília o sindicalista Carlos Alberto Litti Dahmer, o Liti, de Ijuí. Com ele, também estavam dois representantes da Cooperativa de Três Cachoeiras que, através de um grupo de WhatsApp, repassavam e discutiam as reivindicações e as propostas recebidas. “Não tinha líder e a gente tava buscando lá o nosso direito de sobrevivência”, frisa o motorista.

Como a primeira negociação – feita com representantes que, de acordo com João, não falavam pelos caminhoneiros – não acabou com a paralisação, o presidente Michel Temer anunciou em rede nacional, no dia 25, que estava autorizando as Forças Armadas a irem às ruas para liberar as rodovias e retomar o abastecimento do país. E foi nesse contexto – João conta – que entrou a polêmica reivindicação pela intervenção militar.

“Quando ele anunciou, eu já disse: ‘vamos continuar a mesma coisa. A gente não é marginal’. Foi ali que a gente viu que a greve já tava ganha, porque ele tinha chegado no desespero de botar as Forças Armadas. A única coisa que deu foi que, na hora em que saltaram os milicos pra fora, lá em Três Cachoeiras, eles falaram: ‘coloca as faixas pedindo intervenção militar e pronto’”, revela João.

O caminhoneiro reitera que o movimento não tinha nada a ver com política nem queria pedir a volta da ditadura. “Aquilo ali foi um tipo de escudo pra nós. Em qualquer manifesto que tu vai fazer, se tu pedir pro militar vir, aí ele não vai te bater. Sinceramente, eu não sei quem é que inventou isso aí, mas foi só o que a gente fez pra eles não baterem de frente”, coloca.

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