TRANSGÊNERO. A palavra é uma novidade para você? O termo refere-se ao indivíduo que se identifica com um gênero diferente daquele que corresponde ao seu sexo. Não é doença nem distúrbio psicológico. Estima-se que exista um caso para cada 30 mil homens e um caso para cada 100 mil mulheres. Ainda assim, grande parte da população brasileira foi apresentada a essa denominação devido à atual novela das nove da TV Globo.
Mas está longe de ser algo novo. O Hospital de Clínicas de Porto Alegre mantém desde 1998 o Programa de Identidade de Gênero (Protig), sendo referência nacional no assunto. Por lá, já passaram mais de 500 casos — a maioria dos atendimentos culminando com a cirurgia de troca de sexo.
A Doutora em Psiquiatria Silzá Tramontina, integrante da equipe do Prodig, conta que hoje o Programa recebe participantes de todo o Brasil porque em São Paulo, devido a uma longa lista de espera — alcançava 10 anos — por grande demanda, hoje não se recebe novos pacientes. Aqui no Clínicas, o tempo entre o paciente ser acolhido e fazer a cirurgia costuma ser de pouco mais de dois anos. Não apenas por uma questão de demanda, mas porque é um prazo necessário ao acompanhamento do paciente.
“É uma cirurgia irreversível. Então ela precisa ser muito bem pensada e decidida. Não pode ser algo feito logo, sem um acompanhamento”, enfatiza Silzá. Essa etapa fica sob a responsabilidade de uma equipe multidisciplinar. Participam profissionais das áreas de endocrinologia, ginecologia, urologia, além de psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, entre outros.
Os pacientes sempre chegam encaminhados por unidades básicas de saúde. Após triagem, é fechado diagnóstico de transgênero e o paciente passa a ser acompanhado pelo Protig, tendo consultas quinzenais no Hospital de Clínicas. Em geral, são atendimentos em grupo, mas, em alguns casos, há consultas individuais.
Silzá Tramontina atua especialmente com os casos que chegam até o programa ainda durante a infância e a adolescência. A partir dos 12 anos, os adolescentes já podem iniciar esse acompanhamento. Há um grupo para jovens dos 12 aos 16 anos. E outro voltado para transgêneros dos 16 aos 18 anos.
“Muitas vezes já na infância se percebe sinais. E então se acompanha para ver se é o caso. Muitas vezes, a maioria, não é. Mas há casos que sim”, diz Silzá. A cirurgia só se dará, contudo, conforme a legislação brasileira, após os 21 anos. Tudo visando evitar arrependimentos, algo que Silvá diz nunca ter visto entre os pacientes já operados. Alguns podem até chegar ao Programa de Identidade de Gênero com dúvidas, mas a maior parte já está bem ciente do que deseja. E após concluída toda a trajetória clínica, mostram satisfação, agora com um corpo de acordo com seu desejo.
Dura realidade é mostrada na telinha
O drama vivido por Ivana – Ivan após se assumir um homem transgênero – na novela tem chamado a atenção por diversos aspectos. Primeiro pelas descobertas feitas pela personagem de Carol Duarte, passando pelo desconhecimento e preconceito de amigos e familiares até o uso de hormônios indiscriminado. Todas essas agruras, porém, são apontadas como extremamente reais.
Em geral, os pacientes já chegam ao Grupo do Hospital de Clínicas carregando nas suas histórias bastante sofrimento. “Muitos já chegam aqui tomando hormônio por conta, sem nenhum acompanhamento, o que é perigoso. São doses exageradas e que geram efeito colateral”, conta Silzá. O paciente então passa por um endocrinologista, que adequa a dosagem hormonal e faz o acompanhamento clínico anterior às cirurgias, algo necessário para adequar o corpo. Pelo menos em uma consulta ele terá de comparecer no Protig acompanhado de um familiar que o conheça desde a infância.
É provável que a ficção ainda mostre dois acontecimentos possíveis e que gerarão curiosidade do público. O primeiro é a cirurgia. Do sexo masculino para o feminino, o tempo de internação é de três dias. Já do feminino para o masculino, é ainda mais rápido. Porém, ao contrário das “mulheres trans”, que podem ter o órgão sexual remodelado, no caso da cirurgia de feminino para masculino faz-se a retirada dos seios e, talvez, caso o paciente queira, do útero. Nem todos querem.
Dessa escolha depende algo que também poderá ser mostrado na novela e promete gerar grande curiosidade. É possível que um homem transgênero que mantém o útero engravide. Isso exige nova adequação hormonal, mas a medicina permite.
“Me vejo mulher no corpo de um homem”
A montenegrina Paula Kerber, 35 anos, nasceu homem. E por muitos anos olhou-se no espelho e não se reconheceu na imagem refletida. Paula é uma das participantes do Programa de Identidade de Gênero e está no meio do processo. Em agosto de 2018 ela deve passar pela cirurgia de redesignação de gênero.
Desde a infância ela percebia algo diferente, que lhe trouxe muitas dificuldades e que, caso pudesse escolher, não teria vivido. “Eu nunca me descobri. Veio comigo, é genético. Porque se eu soubesse de tudo o que eu iria passar de preconceito, eu não teria sido o que sou hoje”, conta. Paula recorda de atitudes consideradas “de menina” na infância. Não queria jogar bola. Preferia uma boneca. Olhava-se no espelho e via uma menina.
Abandonou os estudos após ser encaminhada ao Conselho Tutelar por ser “um menino diferente”. Achavam que havia algo de errado. Já adulta, ao trabalhar em empresas aqui da cidade, também enfrentou problemas. “Eu tinha de aceitar ouvir piadinhas mesmo trabalhando como todos os outros. Eu tinha de usar um banheiro que não era o meu. Tinha que ser chamada por um nome que eu não gostava. Eu ia embora chorando”, recorda. Ela conseguiu concluir o Ensino Médio e hoje se capacita com cursos na área da beleza enquanto atua como diarista. Mas a verdade é que abrir portas ainda é algo difícil. “Porque tantas terminam na prostituição? Porque não têm oportunidade de estudar, de se qualificar. E mesmo quando qualificadas, a preferência na hora de preencher uma vaga é para outra pessoa”, critica.
Paula foi embora da cidade e viveu no município de Gravataí por vários anos. Agora retorna, lutando por seus direitos. “Eu cansei de calar a minha voz. Eu não sou diferente de ninguém. Me vejo mulher no corpo de um homem. Mas não sou bicho, nem diferente de ninguém”, defende. Paula consegue ter uma boa relação com sua família. “Em toda a família dizem ‘não tenho preconceito’. É porque o caso não é na sua família. Quando surge, aparece o preconceito. A minha viu que eu era diferente. E foram obrigados a me aceitar. Até porque sou independente. Mas temos boa relação”, explica.
Conseguir ter seu nome social nos documentos e ser oficialmente Paula foi muito importante pra ela. “Eu queria ser a Paula. Eu me sentia a Paula. E eu agora sou a Paula”, finaliza, pronta para encarar novas batalhas e conquistar todo o respeito que a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT) merece.
Evento LGBTT ocorrerá em outubro
Está marcado para 22 de outubro, às 16h, no Parque Centenário, a primeira Parada Livre LGBTT de Montenegro.
O objetivo é que o evento conte com toda a parte de saúde – testes rápidos, como de HIV, distribuição de camisinhas e palestras explicativas sobre doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) – além de toda a alegria dos shows que não podem faltar. A principal finalidade, além de liberdade de escolha e de orientação sexual, desmistificando preconceitos, é buscar maior visibilidade.
Roda de conversa
O Coletivo Iris LGBTT promove sempre no último sábado de cada mês, no Espaço Comunitário – rua Santos Dumont 1133 –, uma roda de conversa com a participação da psicóloga Adriana Bandeira. O espaço também abriga um grupo de estudo de gênero. Segundo Ezequiel Souza, um dos integrantes, nos encontros são esclarecidos temas importantes à comunidade LGBTT. Quem quiser participar dos encontros ou ter outras informações pode entrar em contato pelo telefone 998757348.