Brasil é independente há 197, mas os brasileiros seguem dando seus gritos de liberdade
Era 7 de setembro de 1822 quando as plácidas margens do Ipiranga ouviram o brado retumbante do povo heróico no episódio que marcou a Independência do Brasil. Mas o tão esperado grito de liberdade estava sendo preparado há algum tempo. Para o professor doutor em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) Jairo Henrique Rogge, o processo teria iniciado quando a Família Real veio ao Brasil em 1808. “Na verdade, foram vários os fatores que levaram a colônia (Brasil) a romper relações com a metrópole (Portugal) e esses fatores múltiplos não são assim tão facilmente observáveis”, comenta.
Para Rogge, um evento que, se não foi fator decisivo, de certa forma facilitou a independência foi a volta do rei Dom João VI a Portugal, em 1821, e o crescente fortalecimento da elite que havia se formado no Brasil e que não queria perder seu poder para a Coroa. Assim, a proclamação da independência não se deu sob total harmonia, ainda que não tenha ocorrido conflitos generalizados como em outras colônias americanas que também se tornavam independentes na época. “Conflitos mais violentos eclodiram especialmente na região Nordeste e Norte, com levantes pró-Portugal, até 1825, quando ocorre o reconhecimento da independência por Portugal”, analisa o professor. Rogge, que é coordenador do curso de História na Unisinos, observa que há controvérsias se realmente houve algo como um “grito do Ipiranga”.
Declarada a independência, o primeiro ato para garantir a autonomia foi a elaboração de uma Constituição. Conforme Rogge, uma assembleia constituinte foi convocada para, logo depois, ser revogada. “Somente em 1924 é que uma Constituição foi outorgada por Dom Pedro I, mas feita um tanto quanto às escondidas”, destaca o professor. Segundo o ele, outro ponto importante foi sustentar o novo país economicamente. Para tanto, houve a necessidade de tomar empréstimos, o que levou ao início do acúmulo de dívidas e os problemas financeiros e sociais que se desdobram a partir disso. “Certo equilíbrio só chegará cerca de duas décadas depois, com o ciclo do café, que inserirá o Brasil num mercado internacional”, conta Rogge.
Sobre a Independência do Brasil ter sido declarada por um membro da Família Real do país colonizador, Rogge diz que a situação é, no mínimo, ambígua. “Dom Pedro torna-se rei da antiga colônia no mesmo momento em que seu pai é rei na, antes, metrópole. Como ele lidava com isso é algo que só ele saberia explicar”, comenta e observa que o Dom Pedro I tinha suas próprias aspirações políticas, querendo transformar o Brasil numa monarquia absolutista dos trópicos.
No entanto, no Brasil, as histórias de independência não se prendem apenas ao Sete de Setembro. Diariamente os brasileiros lutam pela sua independência, seja do aluguel, financeira ou de algum vício. A seguir, contamos a história de duas pessoas que conquistaram suas independências.
A queda e o levantar de Débora
A história de independência de Débora Zeballes Bentin dos Santos, 33 anos, começa literalmente com uma queda. Ao cair no banheiro, em 2015, ela fraturou o joelho. Após se recuperar, ficou sabendo da necessidade de fazer uma nova cirurgia. Essa complicação fez com que ela acabasse demitida da farmácia onde trabalhava. Viu-se presa ao seguro-desemprego e quando as parcelas dele acabaram, lhe bateu o desespero: “o que fazer?”.
Na época, seu maior medo era a família não ter mais renda suficiente para se sustentar. “Minha filha era bebê, precisávamos comprar fralda e leite especial”, recorda. Para completar, ela não ficou 100% recuperada do joelho: às vezes, ele se deslocava e ela perdia o equilíbrio. Débora também não conseguia subir escadas. Com essas condições, ela tinha uma certeza: não seria contratada por empresa alguma.
Até que uma amiga lhe deu a sugestão que reergueria Débora: aproveitar a “mão boa” na cozinha para fazer lanches. Assim, ela pegou R$ 100,00 do marido e preparou as primeiras levas de lanches, que foram vendidas pelo companheiro da amiga na empresa onde ele trabalhava. Logo, uma moça começou a vender os lanches de Débora também no Centro da cidade. No entanto, o marido da amiga acabou saindo da empresa onde ele fazia as vendas e a menina que vendia os lanches no Centro sofreu um acidente de moto.
Sem ter quem fizesse a venda de seus produtos, Débora ouviu do marido Marcelo a solução que fez seu negócio deslanchar: postar no Facebook. A partir daí os pedidos começaram a aumentar semanalmente. Pensando no futuro, a confeiteira passou a investir em equipamentos. O crescimento do negócio foi tão grande que o marido saiu do seu emprego para trabalhar com Débora, que também colocou os filhos para ajudar. Recentemente, a primeira funcionária foi contratada e a empreendedora pensa que logo precisará empregar mais duas pessoas.
“Hoje, entendo que conquistei minha independência financeira. É muito bom ser chefe de si mesma, apesar de ter mais responsabilidade”, afirma Débora com um sorriso no rosto. Atualmente, além de fazer doces e salgados sob encomenda, ela mantém com o marido o café da Estação da Cultura. “A independência eu não queria só para mim, mas também para meus filhos, que trabalham pra mim. Quando querem algo, eles compram com o dinheiro deles. Assim, eles valorizam o que conquistam”, reforça.
As duas independências de Cléo
O primeiro vício de Cléo Lopes Dias, hoje com 37 anos, começou de forma inocente: acendia o cigarro para que o pai fumasse. Aos nove anos, época na qual morava em Cachoeirinha, passou a dar suas primeiras tragadas. Logo, passou para a maconha e o uso de solventes. Aos 14 anos, já cheirava cocaína. E foi nessa idade que ele tomou consciência da dependência química em sua vida, ao ver amigos mais velhos sendo presos por tráfico de droga. Preocupada, sua mãe lhe encaminhou para o Retiro Comunitário de Reabilitação Ocupacional (Recreo), em Montenegro.
Após nove meses de programa, Cléo conquistou sua independência do vício. “Foi despertador. Abri consciência para a dependência que tinha”, conta. Dali, foram oito prósperos anos, onde Cléo conseguiu emprego, criou um grupo de auxílio para pessoas com dependência química, começou a estudar, se casou e teve uma filha, aos 22 anos. No tempo de sobriedade acabou se afastando dos grupos de apoio. “Esqueci quem eu era. Olhei para trás e não via mais a destruição (que as drogas lhe causaram), via família e dinheiro”, comenta. O excesso de autoconfiança levou Cléo a uma forte recaída.
Numa festa de aniversário de um dos seus irmãos, um copo de cerveja lhe foi oferecido e – apesar dos protestos da mãe – foi aceito. O copo de cerveja daquela festa transformou-se numa latinha durante a semana e escalou até ele retomar o consumo de cocaína e experimentar o crack, fazendo-o cair.
“Perdi tudo o que tinha construído. Quando dei conta de mim, estava na Vila Farrapos (em Porto Alegre) como um andarilho”, relata. Foi então que, em 6 de janeiro de 2009, Cléo deu seu segundo grito de independência: recordou-se do Recreo e contou com o auxílio de um ex-internado da comunidade terapêutica que havia virado prefeito em Cachoeirinha para retornar para Montenegro e se interar. “Cheguei aqui e só tinha uma cueca dentro de uma sacola”, lembra.
Nove meses depois de um novo tratamento, Cléo se viu pronto para sair quando o presidente do Recreo, Otávio Furtado, perguntou o que ele iria fazer. Cléo deu uma lista de desejos: faculdade, tirar novamente a CNH, trabalhar. A réplica de Otávio lhe doeu: “Tu não sabe nem se vai ficar sem usar”. “Quando ele perguntou, dei 20 anseios, mas não falei o que ia fazer para não voltar ao uso. O sucesso é achar uma forma de não voltar a usar”, pondera Cléo.
Assim, Cléo encontrou no próprio Recreo sua forma de se manter longe das drogas. Começou como estagiário logo após seu segundo tratamento e hoje é auxiliar terapêutico e coordenador do grupo de jovens da entidade. Além disso, Cléo se mudou para Montenegro, está casado pela segunda vez, reatou o contato com sua filha mais velha e cria outras duas com a nova mulher. “Estou feliz comigo. Estou materialmente realizado e espiritualmente eu vivencio, hoje, o verdadeiro amor da vida”, comenta.
“O que é independência é difícil de dizer, mas se tivesse que definir é ser um ser preenchido de amor”, afirma Cléo. “A recuperação (de um vício) te dá isso de volta (ser preenchido de amor). Te dá o direito de escolha, e isso é liberdade: direito de se fazer valer novamente”, conclui.