Tradição. Revolução ainda merece debates, mas a identidade que criou deve ser valorizada
Na semana de 14 a 20 de setembro o Rio Grande do Sul comemora sua história. Prendas e peões devidamente trajados recordam um dos feitos mais importantes de sua terra, naquela que foi a mais longa e a segunda mais sangrenta Revolta Provincial do Período Regencial de Dom Pedro II. A Revolução Farroupilha, também chamada de Guerra dos Farrapos ou Decênio Heróico, que aconteceu de 1835 a 1845, traz no cerne a controvérsia típica das revoltas antigas, cujos poucos registros são recontados sob olhar e interesse da época em que são resgatados.
Os reais motivos ainda suscitam debates; assim como o emprego nas fileiras da força de trabalho das fazendas (peões) e dos índios para a defesa da República sonhada por alguns e aceita por outros. Assim também carece de valorização o sacrifício dos escravizados negros, sepultados no ignorado Massacre de Porongos.
Todavia a importância da Semana Farroupilha não carece de justificativa. O resgate desta façanha épica movida por indignação contra injustiças e exploração da Coroa, moldou a identidade dos Gaúchos. É este orgulho que alicerça uma postura de contestação do povo, permitindo que caminhe de cabeça erguida e reivindique sua importância na história da Nação.
Além do mais, a Semana Farroupilha – assim como todo o tradicionalismo – é capaz de fazer justiça a batalhas mais antigas através das quais se desenharam as fronteiras sulistas na ponta de lança e fio de espada. Faz honra também ao homem e à mulher do campo, cujos traços no mapa eles rabiscaram com as mãos na terra. O que não pode ser ignorado é o fato que a revolta foi liderada pela classe dominante, formada especialmente por fazendeiros de gado, que usaram as camadas pobres da população como massa de apoio na luta.
Fidelidade que não foi reconhecida
Desde o século XVII o Rio Grande do Sul foi palco das disputas entre portugueses e espanhóis, como nas guerras Guaranítica e Cisplatina (1825 a 1828). Inclusive, o professor de Aplicação da Ufrgs, Jocelito Zalla, escreveu uma tese na qual defende que o evento histórico mais significativo para a configuração territorial, social e identitária do Rio Grande do Sul foi a Guerra Guaranítica (1750 a 1756). Neste episódio, índios Guaranis e padres jesuítas se negam a abandonar suas Reduções (lado de Portugal) e cruzar o Rio Uruguai (lado da Espanha), como havia sido imposto pelo Tratado de Madri.
Todavia, avalia o estudiosos, a história recontada 160 anos depois colocou a Guerra dos Farrapos como fator de elevação política do gaúcho, consagrando este conflito como ‘mito’ fundador do Estado. E ele defende incluisve que existem balizas suficientes na história para sustentar a proposição: os limites físicos atuais do Estado foram, a grosso modo, definidos neste período; a população indígena dos Sete Povos acabou permanecendo no território português, e suas atividades produtivas legaram ao gaúchos alguns hábitos, como o churrasco e o chimarrão (Guaranis foram grandes cultivadores de ervais).
O episódio lembrado no 20 de setembro surge justamente após o fim deste período, pois os lideres acreditavam que então o governo central incentivaria o crescimento econômico do Sul, como pagamento às gerações de famílias que se voltaram para a defesa do País. Ao invés disto, a Coroa taxou o charque gaúcho com 25% de imposto, em detrimento do produto uruguaio que pagava 4% no Rio de Janeiro.
Ao mesmo tempo, aumentou a taxa de importação do sal, insumo básico para a fabricação do produto, além de carregar no imposto de outros produtos rio-grandenses como erva-mate, couros, sebo e graxa. Por isso, o historiador e jornalista Eduardo Bueno tem a liberdade de classificá-la como “revolta tributária”. E, na verdade, segundo ele, quando se deram conta, os Farroupilhas ‘estavam’ republicanos.
Quase um ano tentando evitar a guerra
Em 20 de setembro de 1835, na verdade, os rebeldes tomaram Porto Alegre, obrigando o presidente da província, Antônio Rodrigues Fernandes Braga, a fugir para Rio Grande. Bento Gonçalves, que planejou o ataque, empossou no cargo o vice, Marciano Ribeiro, enquanto o império nomeou José de Araújo Ribeiro. Este nome não agradou os farroupilhas, que queriam um presidente que defendesse os interesses sul-rio-grandenses. Os debates políticos, em gabinetes porto-alegrenses apartados do povo, seguiram.
Marciano Ribeiro ficou no cargo até 9 de dezembro. Araújo Ribeiro, então, decidiu partir para Rio Grande e tomou posse no Conselho Municipal da cidade portuária. Bento Gonçalves ainda tenta conciliar ao convidá-lo a tomar posse em Porto Alegre. Mas este recusou e passou a reunir aliados, como o ‘vira-casaca’ Bento Manoel Ribeiro – líder no 20 de setembro – e o general monarca Manuel Luís Osório.
Em 3 de março de 1936, o governo central ordena a transferência da capital gaúcha para Rio Grande: é o sinal da ruptura. Inúmeras ações de rebeldia foram se sucedendo durante seis meses, com prisões e escaramuças, até surgir aquele que pode ser considerado o verdadeiro pai da República. Em 11 de setembro de 1836, quase um ano após o lendário 20 de setembro, no Campo dos Menezes, o general Antônio de Souza Neto toma uma decisão que surpreendeu os demais líderes.
A ação impetuosa de independência do Rio Grande do Sul, sob pressão dos companheiros Manoel Lucas de Oliveira e Joaquim Pedro Soares, foi no entusiasmado da derrota que sua cavalaria impôs ao imperial João da Silva Tavares, no campo do Arroio Seival, hoje município de Candiota. Nasce a República Rio-Grandense, agora deixando de lado o caráter corretivo para se tornar separatista.
Piratini foi o berço da República
E após 10 anos de desgaste e 3 mil mortes, a saída foi conciliatória. Segundo o professor Zalla, no Tratado de Ponche Verde havia clausula de incorporação da elite revoltosa à estrutura militar e burocrática imperial. Tudo esquecido, a República de Piratini desaparece; e inclusive os gaúchos voltaram a montar pelo exército imperial na Guerra do Paraguai (1864 a 1870). Foi preciso algumas décadas para que o conflito com o governo central pudesse ser comemorado.
Foram os historiadores republicanos, como Assis Brasil e Alcides Lima, que reabilitaram o episódio, já na crise do Segundo Reinado. O sangue derramado finalmente faria brotar árvores da mudança, quando estes estudiosos o transformam em marco do republicanismo brasileiro, “em narrativas afinadas com a história-monumento que comemorava os feitos dos grandes homens”, declarou Zalla.
Já Eduardo Bueno salienta a importância do Partido Republicano Rio-grandense (PPR) na articulação que levaria ao golpe político-militar de 1889 que depôs Dom Pedro II. Ele afirma ainda que em 1930, antes da cavalgada do Grupo dos Oito com Paixão Côrtes (1947), Getúlio Vargas soube resgatar o “caudilhismo” para inflamar aqueles que marcharam ao seu lado até São Paulo. Inclusive, ele próprio é honrado na figura daquele político pilchado e mateando que amarrou seu cavalo no Obelisco da avenida Rio Branco.
Fatores da política
– O cenário político no Brasil era o “Período Regencial”, iniciado após Dom Pedro I abdicar do Trono e voltar a Portugal. O filho, Pedro II, viu-se na contingência de ter que sucedê-lo com apenas cinco anos (1831), justamente por isso foi tutelado por regentes que governaram ao longo de toda a década. Com um governo enfraquecido, portanto questionado, o período foi um dos mais conturbados da história brasileira; com uma série de revoltas regionais que tiveram que ser sufocadas. Dom Pedro II assumiu em 1840, com 14 anos, encerrando o Período;
– No Rio Grande do Sul essa divisão foi extremada por: Partido Liberal = republicanos, que pejorativamente eram chamados de Farroupilhas, que significava a ralé mal vestida (o termo surgiu pela primeira vez na Conjuração Bahiana (1789) na Bahia, com Cipriano Barata). Os Liberais defendiam províncias com mais autonomia e eleições. Na oposição estava o Partido Conservador = imperialistas, que pejorativamente eram chamados de Caramurus, que significava ser muito leal à Portugal e ao rei. Defendiam o poder total da Coroa;
– A justa comemoração do evento e da tradição que perpetuou é confirmada pela expansão que a Semana Farroupilha alcançou, com festejos em todas as cidades. Isso contrasta com a história, pois nem todos os sulistas foram Farrapos. A maior parte da Guerra ficou restrita a pequenas guerrilhas – escaramuças – como as ocorridas no Vale do Caí. Salvo alguns entrechoques de cavalaria mais fortes, onde se pode citar, em Triunfo a Batalha do Fanfa e o bombardeio à cidade; e em Montenegro o ataque aos Farroupilhas no Morro da Fortaleza (marcado pela Cruz das Almas). A maior concentração dos republicanos foi na metade Sul, e as grandes cidades nunca foram conquistadas; inclusive Porto Alegre, justo onde hoje se concentram os festejos. Inclusive, a Capital resistiu bravamente a um cerco de 1.283 dias, o que lhe rendeu o título dado por Dom Pedro II e estampado na bandeira “A Leal e Valorosa Cidade de Porto Alegre”.