Mudança de nome por questão de gênero ficou mais fácil e pode ser feita diretamente no cartório de registros
“É como um segundo nascimento, dia 31 de agosto de 2018 é meu segundo aniversário”, define Julia Dahmer Souza, 26 anos, exibindo sua nova certidão de nascimento. O primeiro foi em 19 de fevereiro de 1992, quando ela nasceu e passou a chamar-se João Paulo Dahmer Souza.
Desde a infância, Julia já sentia atração por roupas e sapatos femininos e com salto alto. “Eu gostava de maquiagem, de vestidos, eu me olhava no espelho e me via como mulher”, resume, dizendo que nasceu no corpo errado. Sua transição começou na adolescência, aos 14 anos, tomando hormônios escondido dos pais. Não procurou um médico, mas orientação em pesquisas da internet e conversas com pessoas que também utilizam a substância. “Naquela época não existia muitos (trans), mas eu pesquisava muito”, afirma.
Com o tempo, os pais, as quatro irmãs e os dois irmãos acabaram entendendo a situação. Julia afirma que o receio da mãe era com a segurança da filha, tendo em vista o preconceito e os casos de violência motivados pela discriminação com Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros (LGBTs). “Ela tinha medo também que eu tivesse depressão (pelo bullying) e até de suicídio”, completa. Seu pai aceitou ainda com mais facilidade, e foi quem mais lhe deu apoio.
“Sempre fui afeminada, podia usar roupa de menino, mas alguma coisa me ‘entregava’”, diz ela. Por isso, desde cedo, sua mãe já ouvia frases como “ele vai ser gay”. Julia acredita que não sofreu bullyng na escola pela sua forma de se relacionar. “Eu sempre fui uma pessoa tão querida que, por mais que fosse afeminada, não faziam nada porque eu me dava bem com todo mundo”, acrescenta.
Em 2015, Julia ficou feliz com a oportunidade de fazer a carteira de nome social. A escolha do nome vai ao encontro do apelido que já tinha desde os tempos de João Paulo. “Eu era a “Ju”, na escola e em casa, ninguém me chamava de João porque não combinava, eu sempre fui bem menininha, então me chamavam de Ju”, explica. Por isso, ela entendeu que devia escolher um nome que iniciasse com essa sílaba. Diante de muitas possibilidades, optou por Julia. “É discreto, pequeno, fácil, não é muito comum, então me batizei como Julia”, diz ela, sorrindo.
A carteira de nome social facilitou sua vida, mas esse documento não é aceito em todo lugar, o que lhe causava constrangimentos. Por isso, muitas vezes ela ainda ouvia lhe chamarem por João Paulo e, ao se identificar, percebia olhares curiosos em sua volta. “Era chamado um nome de homem e aí aparecia eu, toda feminina”, afirma.
Julia menciona uma ocasião em que estava no consultório médico e, ao ouvir seu nome, dirigiu-se a porta da sala do médico, mas foi barrada. O jeito foi explicar que, embora sua aparência, seu nome era João Paulo. Hoje, sorri ao lembrar, mas afirma que essas situações eram constrangedoras.
Desde o dia 31 de agosto de 2018, no entanto, Julia Dahmer Souza passou a existir oficialmente. Ela aproveitou a mudança na legislação que facilitou a troca de nome por questão de gênero diretamente no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, e sem necessidade de cirurgia de mudança de sexo. Feliz com o documento, ela já encaminhou o novo CPF e irá providenciar a Carteira de Identidade.
Três pessoas mudaram o nome na cidade
Com base no Provimento 73, do dia 28 de junho de 2018, do Conselho Nacional da Justiça (CNJ), Julia Dahmer Souza é uma das três pessoas que mudaram de nome por questão de gênero em Montenegro. Trata-se de um ato administrativo que dispõe sobre a averbação da alteração do nome e do gênero em documentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no Registro Civil das Pessoas Naturais.
Em seu artigo 2º, é previsto que maiores de 18 anos poderão requerer a alteração e averbação do primeiro nome a fim de adequá-lo à identidade autopercebida. A escrevente autorizada do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, em Montenegro, Isabel Schüller, esclarece que, antes deste provimento, a alteração era realizada através de processo judicial e passava pela análise de uma equipe multidisciplinar. Com o ato administrativo do CNJ, a solicitação ficou mais simples, podendo ser feita direto no Catório, com apresentação de um requerimento e documentação solicitada.
Além da certidão de nascimento com as informações básicas, a pessoa recebe também um Certidão de Inteiro Teor de Nascimento. Neste documento é mais completo, relatando o registro de nascimento e incluindo a averbação com a alteração do nome e do gênero. Isabel observa que, para situações do dia a dia basta apresentar a certidão mais resumida, enquanto a de “inteiro teor” é para alguma eventual necessidade de comprovar a alteração do nome.
Nome em sintonia com aparência deve facilitar no mercado de trabalho
Julia Dahmer Souza acredita que a mudança oficial no nome facilitará inclusive no mercado de trabalho, onde ainda percebe a discriminação. No momento, ela auxilia sua mãe em vendas. Há cerca de um ano, Julia trabalhava como auxiliar de produção em uma indústria em São Sebastião do Caí.
Na empresa, ela precisava usar o vestuário masculino para colocar o uniforme e, no início, enfrentou o preconceito. “Ouvia piadinha, eu usava saia ou vestido, mas colocava um shorts por baixo, nunca fiquei nua (no vestuário), sempre me dei ao respeito”, afirma. “Esse preconceito era no início, depois que me conheceram, aí me respeitavam”, acrescenta.
Ela observa a dificuldade para um trans ser contratado no comércio de Montenegro. Julia afirma que é mais fácil conseguir emprego em indústrias, em setor distante do público. “Empresas contratam trans para trabalhar em lugar fechado, onde a sociedade não vai enxergar”, afirma. “Infelizmente, Montenegro é assim, espero que um dia mude”, afirme. Com os novos documentos, seu nome e aparência estão em sintonia, o que acredita facilitará a luta contra o preconceito inclusive no mercado de trabalho.
Essa dificuldade em conseguir trabalho contribuiu para que ela optasse por mudar para São Leopoldo, por alguns anos, onde morou com seu pai. Por a cidade ser maior que Montenegro, entendeu que haveria menos preconceito, inclusive na busca de trabalho. “Mudei para me sentir melhor, lá as pessoas não me viam como aqui (em Montenegro), como uma alienígena”, observa. Ela continuou os estudos até a conclusão do ensino médio e, em 2014, retornou para Montenegro, onde mora com a mãe.
“Pessoas assim, não mereciam viver”
Por ser transgênero, Julia Dahmer Souza já passou por muitas situações difíceis, devido à discriminação das pessoas. Ela observa, no entanto, que o preconceito já foi pior. Há 10 anos, era ainda mais comum ouvir nas ruas expressões diversas como “travecão”, “bicha”, “boiola”, entre várias outras, além de associar LGBTs com doenças como a Aids, por exemplo.
Julia diz que nunca se importou muito com essas situações, mas houve um episódio que lhe marcou mais. Ela conta que, ao passar por um rapaz conhecido na rua, o ouviu dizer para a namorada dele que “pessoas assim, não mereciam viver”. “Como se todos os gays, lésbicas ou trans devessem morrer, isso me chocou muito, desejar a morte de uma pessoa sem conhecê-la bem, sem saber o que eu tenho a oferecer, me chocou muito”, afirma. “Não precisa aceitar, mas respeitar é fundamental”, resume Julia.
Ela recorda também os comentários maldosos ouvidos quando saía com seu último namorado em Montenegro. A relação durou por quatro anos, ele não era de Montenegro, mas vinha visitá-la e ambos costumavam ir ao cinema, lancherias e restaurantes. Nessas ocasiões, Julia percebia os olhares curiosos das pessoas e comentários, questionando se ele sabia que era transgênero. “Faziam coisas para ele notar (que ela é trans), mas ele nunca deu bola para esse tipo de preconceito’, afirma.
Julia afirma que sempre namorou homens, e nunca teve atração por mulheres. Ela acrescenta que alguns se aproximaram sem saber que ela é trans, mas Julia salienta que sempre deixou isso claro. “Eu nunca fiz nada antes de falar (que é trans), nunca beijei, não saí ou entrei no carro”, salienta. Para Julia, esclarecer que é trans é importante, tanto pela sinceridade como pela sua própria segurança. “O Brasil é o país que mais mata LGBTs, então, acho que tem que ser o que a gente é, sem fingir”, afirma.