Quando os games se tornam um problema

Game Over. Jovens, quando expostos sem orientação e por muito tempo, ficam mais agressivos

Os fãs da trilogia De Volta para o Futuro devem lembrar de uma cena onde o personagem Marty McFly (Michael J. Fox) avança de 1985 para 2015 em carro voador capaz de viajar no tempo. Nesse futuro, há um jogo de fliperama dos anos 80. Marty mostra para crianças como jogar e, ao perceberem que têm de usar as mãos em joystick, elas deixam o viajante do tempo de lado, dizendo que “é coisa de bebê”.

De certa forma, aquele futuro é real, quando vemos que estes jogos, há muito, já foram superados pelas novas tecnologias. De fato, as crianças não veem graça alguma nos vovôs dos videogames. Nascidos em um mundo touch screen, com smartphones, tablets, de Nintendo WII, XBOX a PS4, o hábito de jogar sozinho ou online é tão comum quanto pular amarelinha na década de 80.

O que mudou de lá pra cá também é a forma como os pais se relacionam com os filhos em meio a tantas opções de games. Preocupados com os limites e desafios dessa infância imersa no virtual, algumas da piores previsões se confirmaram na adolescência do século 21. Ansiedade, pressa, irritabilidade excessiva com o mundo real e a sensação de nunca perder, ou a dor intensa por não ter vencido, ou mesmo por não ter recebido do s pais a nova edição de um game fazem parte da realidade atual.

Com 40 anos de carreira como pedagoga, Maria Agraciada Karnal de Oliveira atua como orientadora em escola particular e ainda em uma rede de creches com 400 crianças da Sociedade Beneficente Espiritualista. Em contato diário com pais, crianças e professores, ela aponta que a tecnologia trouxe muitos benefícios para essa geração e se surpreende com a precocidade cada vez maior quanto à assimilação das plataformas digitais. “Os jogos vêm para auxiliar o trabalho pedagógico. Fazem com que a criança seja descobridora de outras coisas. O que falta é limite no controle de tempo”, aponta a especialista.

Agraciada observa que nem sempre os pais ou responsáveis estão juntos para explicar a diferença entre o real e o jogo. O teor de agressividade é muito alto e transcende a tela do computador para o dia a dia na família e na escola. “Sem acompanhamento, eles crescem sem saber perder, não têm tolerância à frustração e, quando adultos, não sabem transpor os obstáculos da vida. Tem que saber que na vida também se perde”, justifica.

A ampulheta e a negociação
Não que todos tenham que dispor de um objeto antigo, como a ampulheta, em casa, mas o princípio de vigiar e controlar o tempo é válido. “Há crianças que passam a noite jogando, sete dias por semana. É muito. Os adolescentes precisam de oito horas de sono por dia. Deixar o tempo de jogo livre no fim de semana é interessante, pois os jogos pertencem ao mundo deles e não podemos simplesmente tirá-los desse universo”, pondera a pedagoga Maria Agraciada Karnal de Oliveira.

Uma dica é conversar em casa. Às vezes, até os pais estão navegando na internet e, sem perceber, viram às costas aos filhos. “Os pais não podem ficar a mercê das expectativas e somente ceder à pressão dos filhos por novos jogos. Através do diálogo, é preciso dar a eles a experiência de regras e cumprimento de condições, para que compreendam a lógica da vida. Fazer tarefas, ser assíduo e pontual, por exemplo, em vez de ganhar sem nada para cumprir”, aponta Agraciada.

Há casos de alunos que não anotam uma linha em sala de aula e se saem acima da média nas notas. Mas cuidado! Para esses, é preciso alertar que a memória se perde, que é preciso manter o conteúdo. “Alguns se acham onipotentes e, na prática, não é assim”, afirma a pedagoga.

E quando o jovem resolve partir para a agressão verbal, comum em casa e às vezes em sala de aula, é preciso ter firmeza. “Se eles acham que têm liberdade de dizer, isso nos dá a de falar. Assim, pais e professores têm o desafio de ensinar a saber ouvir, para depois falar”, pontua Oliveira.

empresário defende que agressividade também é questão de caráter

Para empresário, agressividade está na pessoa
Pai de um menino de cinco anos, o empresário Jaime Büttembender mantém uma loja de aluguel e venda de jogos e de artigos para games na cidade. Costuma deixar o filho à vontade na smartTV. “Mas não deixo ele ver filmes de terror, depois não dorme”, conta entre risos. Para ele, a tendência à agressividade está mais relacionada à personalidade de cada um do que à exposição aos jogos. “Tudo o que é demais nessa vida faz mal. Inclusive religião, política, trabalho, comida. Tem que dosar. O jogo tem que servir como diversão, não como vício extremo, que tu não possa fazer mais nada além disso”, afirma.

Na área de games desde 1999, Jaime chegou a ter Lan House com mais de 10 TVs e computadores para a gurizada se divertir. A febre das Lan Houses e Cibercafés foi na primeira década dos anos 2000. Depois disso, a internet melhorou de velocidade, distribuição e preços, assim como os videogames. Dessa fase, o empresário lembra de jogadores em crise de cólera. “Tem uns que alteram o humor na hora em que estão jogando. Quando perdiam, quebravam parte do videogame”, recorda. Para o empresário, isso não é culpa apenas do jogo, está na personalidade da pessoa. “Se ele faz isso no jogo, vai fazer em qualquer lugar, na brincadeira da escola, com os pais, em casa. O problema não vem do videogame. Quem educa são os pais. A escola ensina… não adianta dar tudo em bens para o filho e não dar a devida atenção para eles”, analisa Bütembender .

Quanto à educação em casa, a pedagoga Maria Agraciada revela que, quanto mais tempo juntos pais e filhos desfrutarem, melhor. “Jogar com eles, ser participativo, promover a interação familiar. Falta o olho no olho. Nada melhor do que educar olho no olho”, destaca.
A profissional diz ainda que nunca presenciou cenas de raiva e de agressividade, mas tem notícias de jovens que são tratados por colegas psicólogos. São crianças e adolescentes que adoecem por causa de jogos. “Vira vício. Há adultos que também são vítimas do mundo virtual”, aponta Maria Agraciada.

A mudança de João
Pai e mãe trabalham o dia todo e o pequeno João, de 11 anos, ficava sozinho em casa à tarde, na maior parte do tempo, em frente ao computador, jogando League of legends, um game de estratégia em que rola morte e destruição. Não demorou para que João se tornasse, em casa e na escola, mais agressivo, irritadiço e impaciente. Parou de fazer os deveres, atrasava os temas e, quando cobrado, reagia com violência. Apavorada, a mãe achava, a princípio, que eram apenas as primeiras manifestações da adolescência e só percebeu que o LOL era o gatilho quando, por descuido, a internet em casa foi cortada por falta de pagamento.

João ficou tão revoltado que tentou agredir a mãe. Foi aí que “caiu a ficha”: a “babá” estava mudando a personalidade do seu filho. Junto, veio a constatação de que, de fato, ele ficava tempo demais sozinho. “Infelizmente, não posso deixar de trabalhar, mas procurei atividades de grupo que o deixam menos tempo só, como natação e uma escolinha de futebol”, revela Isabel.

Jogos, agora, somente quando a mãe ou o pai estão em casa, à noite, e no máximo por duas horas. “Ele está aprendendo que não pode ter tudo, a agressividade diminuiu, mas sei que esse é um processo longo e que o resultado também depende de nós”, ressalta a mãe.

* A pedido da família, os nomes foram trocados.

 

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