Proteção do patrimônio histórico de Montenegro é centro de debate

entidades trabalham juntas em busca por lei que garanta a preservação de prédios relevantes para a história da cidade e que também auxilie proprietários

Muito mais do que uma obra de engenharia, prédios e outras construções ajudam a entender nosso passado e pensar nosso futuro. Por isso, dar atenção ao patrimônio histórico é bastante importante. Tamanha importância é celebrada em 17 de agosto através do Dia Nacional do Patrimônio Histórico. Para chamar atenção ao tema, o Jornal Ibiá, por meio do programa Estúdio Ibiá, da Rábio Ibiá Web, promoveu na última quarta-feira, dia 18, um debate sobre o tema que envolveu representantes do Poder Público e da sociedade organizada.

Ao longo de 30 minutos, o presidente do Movimento de Preservação do Patrimônio Histórico de Montenegro (MPPHM), Ricardo Kraemer; o presidente do Conselho Municipal de Cultura, Marcelo Ohweiler; e o secretário municipal de Gestão e Planejamento de Montenegro, Fabrício Coitinho, conversaram sobre diversos aspectos do tema, que em Montenegro segue causando bastante discussão.

No debate, foi falado sobre a importância de se manter os bens materiais históricos da cidade e formas de promover essa manutenção. Ricardo ressaltou que o Movimento entende que esses imóveis são um bem coletivo e que, por isso, é justo que o coletivo ajude o proprietário a mantê-lo. “Nós estamos, há pelos menos uns 30 anos, tentando convencer o Poder Público de que um conjunto de prédios e de espaços daqui de Montenegro deva ser alvo de uma legislação que preveja o regramento de tombamento, e que preveja, inclusive, o inventário dos bens e também incentivos para que eles sejam preservados”, apontou.

O secretário municipal de Gestão e Planejamento garantiu que a Prefeitura vem trabalhando em cima desse tema. “(O patrimônio histórico) É tido como uma das prioridades da Administração por entendermos que a gente precisa resgatar nossa história para viver o futuro – precisamos honrar essa história, o que nos trouxe até aqui, para viver o futuro”, comentou. Fabrício ressaltou que resgatar o patrimônio histórico é uma forma de dar sensação de pertencimento à população – que passa a conhecer melhor sua história – e também de explorar a cidade turisticamente.

Durante as falas, os convidados ressaltaram que estão todos em convergência no entendimento de que é preciso tratar da criação de uma legislação para cuidar dos imóveis considerados históricos bem como trabalhar num inventário para determinar uma lista desses bens. Tanto que Marcelo fez o contive para que representantes do Executivo e da MPPHM participassem de uma das reuniões do Conselho Municipal de Cultura para tratar do tema. “O grande ponto, que ficou de mais importante e que eu acho que é fundamental agora, é essa questão de a gente, de alguma maneira, termos esse diálogo”, ressaltou.

Destaque também para o patrimônio artístico e cultural
Montenegro carrega, entre outros, o título de Cidade das Artes. Recebida em 2003, a alcunha destaca o reconhecimento e identificação do Município e sua população pelas manifestações artísticas e culturais. Esse tema também acabou entrando no debate realizado no Estúdio Ibiá. “Eu acho importante a gente ver essas duas questões. Uma coisa é o patrimônio histórico material, mas a gente tem o patrimônio histórico imaterial, que é a nossa cultura, nosso folclore, as lendas”, destacou o presidente do Conselho Municipal de Cultura, Marcelo Ohweiler.

Título de Cidade das Artes para Montenegro foi estabelecido em 2003

Presidente do MPPHM, Ricardo Kraemer ressaltou que o Movimento tem seu foco voltado para o patrimônio material, mas que não deixa de pensar no patrimônio cultural. “Nós sabemos, por exemplo, que Cidade das Artes é uma conquista, é um patrimônio nosso. Bom por que Cidade das Artes?”, apontou e lembrou da necessidade de se regatar e guardar diferentes elementos da cultura montenegrina. Ele ressaltou que fazem parte dessa cultural diversas etnias que vão desde indígenas, passando pelo movimento negro e chegando até imigrantes de várias origens.

Lembrando que é preciso conhecer a nossa história para traçar nosso futuro, o secretário municipal de Gestão e Planejamento, Fabrício Coitinho, afirmou que a Administração Municipal já vem trabalhando num resgate da cultural local. Tal movimento se dá, principalmente, por meio de livros que tratam das histórias de Montenegro.

Os convidados também lembraram de manifestações culturais e artísticas que se perderam ao longo dos anos na cidade. “Montenegro teve festas de São João muito características, que traziam pessoas de toda a região para acompanhar as festas de São João, (havia) concursos de quadrilha. São coisas que hoje pouco se fala nas escolas, pouco se fala na cidade”, destacou Fabrício. Outras manifestações, como os ternos de reis também foram lembradas.

Fabrício Coitinho e Ana Wollmann destacam movimentação do Executivo na construção de um projeto de lei que trate do patrimônio histórico da cidade

Ainda não há lei para proteção dos imóveis e incentivos aos proprietários
Um decreto do Executivo montenegrino datado de 2012 estabelece restrições à emissão de alvará de licença de demolição de prédios de interesse de preservação histórica na cidade. O mesmo documento também determina que reformas e ampliações dos prédios arrolados na lista devem ter aprovação e licenciamento da secretaria municipal de Obras Públicas (SMOP) para garantir que não ocorra a descaracterização do bem cultural. Assim, ele é o documento que dá alguma segurança para os prédios históricos de Montenegro.

A lista do decreto de 2012 conta com mais de 100 imóveis que seriam de interesse histórico, cultural ou arquitetônico da cidade. No entanto, boa parte deles já está bastante descaracterizada. Dos imóveis inclusos na lista apenas seis já são tombados e protegidos por lei. O Palácio Rio Branco, atual sede do Executivo, a Usina Maurício Cardoso, sede do Legislativo, e o atual prédio da SMOP são tombados por decretos municipais. Já a Estação Ferroviária e seus arredores e os prédios do Museu Histórico Nice Antonieta Schüler e o do Arquivo Histórico Maria Eunice Müller Kautzmann são tombados por decreto estadual.

O decreto também previa que em 18 meses deveria ser apresentado um projeto de lei (PL) de preservação de prédios com valor cultural, histórico e arquitetônico para Montenegro. No entanto, quase 10 anos depois e passadas diversas gestões, tal proposta ainda sequer foi votada pelo Legislativo. No final de 2020, o então prefeito Carlos Eduardo Müller, o Kadu, chegou a encaminhar para a Câmara de Vereadores um PL sobre o tema, mas ele acabou sendo arquivado. Antes disso, um primeiro projeto foi encaminhado ao Legislativo ainda no governo de Percival de Oliveira, mas foi retirado da pauta, em 2013, pelo seu sucessor Paulo Azeredo.

Debate contou com a participação de representantes do MPPHM, Conselho Municipal de Cultura e da Prefeitura. FOTO: Reprodução/YouTube

De acordo com o secretário municipal de Gestão e Planejamento de Montenegro, Fabrício Coitinho, o Governo Zanatta está trabalhando, junto com o MPPHM, numa nova versão do projeto de lei. “A parte que mais gera discussão de tudo o que a gente já montou é, realmente, o tipo de incentivo que vai ser dado para o proprietário”, revela Coitinho. O secretário observa que isentar o dono do imóvel histórico de pagar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) não é suficiente.

Para isso, como explica a arquiteta e urbanista da Prefeitura de Montenegro lotada na secretaria municipal de Gestão e Planejamento Valéria Wollmann, está incluso no PL a criação de um conselho e de um fundo para auxiliar os proprietários de imóveis históricos a manterem os bens em bom estado de conservação. A arquiteta destaca que, paralelo ao trabalho na construção do PL, o Executivo também está montando um termo de referência para licitar a realização de um inventário para determinar imóveis passíveis de tombamento e a forma que esse tombamento poderia ser feito.

Reforma, restauro, revitalização ou requalificação? Professora explica diferenças
A discussão sobre a preservação do patrimônio histórico é permeada por termos técnicos que nem sempre estão claros. Fala-se sobre reforma, restauração, revitalização e requalificação, que acabam sendo confundidos. A arquiteta e urbanista professora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pós-graduada em restauração Ana Lúcia Meira utiliza-se da Carta de Veneza – documento da década de 1960 usado como referência para o tema – para explicar o que é restauração.

Tal documento diz que restauração é uma operação de caráter excepcional cujo objetivo é conservar e revelar os valores estéticos e históricos de um monumento e que se fundamenta no respeito ao material original e aos documentos autênticos. “Então, quando a gente restaura uma edificação a gente não busca voltar ao original, mas, sim, preservar as interferências que houve ao longo do tempo e que autenticam a história daquela arquitetura”, explica Ana, que também atuou por anos no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A professora ressalta que o caráter da restauração é tão importante que ela é atribuição profissional exclusiva dos arquitetos. “Tem que haver uma série de estudos prévios antes de fazer a proposta de intervenção”, reforça.

Ana Lúcia Meira é professora da Unisinos e trabalhou por anos no Iphan. Ana Lúcia Meira é professora da Unisinos e trabalhou por anos no Iphan. FOTO: Arquivo Pessoal

Já a reforma trata-se duma obra voltada para prédios que não possuem valor histórico, cultural ou arquitetônico para a sociedade como um todo. “(Para a reforma) Não preciso fazer um projeto e me preocupar com os elementos, com o que é original e o que não é”, aponta Ana. Seguindo em sua explanação, a arquiteta explica que os termos reabilitação e requalificação estão ligados ao sentido de introduzir melhorias no desempenho das edificações e podem estar associadas a uma restauração. “Não necessariamente a gente vai reabilitar ou requalificar apenas aquelas arquiteturas que têm valor”, alerta. “Reabilitação ou requalificação dizem respeito a melhorar a qualidade do bem arquitetônico”, resume.

A docente também chama atenção para o uso do termo revitalização. “Revitalização é dar nova vida àquilo que está sem vida”, explica Ana. Ela dá como exemplo o Centro Histórico de Porto Alegre. “Ele tem muita vida, ele não precisa de um projeto para dar nova vida. Ele precisa de um projeto, sim, para se requalificar”, afirma. “Por outro lado, é muito correto usar revitalização para, por exemplo, áreas portuárias que, via de regra, foram abandonadas nas cidades e se encontram completamente sem vida. Aí cabe fazer projetos de revitalização”, comenta.

“Meu apreço por essa casa é sentimental”, destaca proprietária
A imponente casa localizada na rua Coronel Antônio Inácio, próximo da Praça Municipal Ivo Bühler, a “pracinha da Matriz”, e conhecida por suas gaiutas já é centenária. Ao menos é o que indicam os dados da família Daudt, cujo patriarca José Pedro Daudt construiu a residência.

Hoje, a casa é propriedade de sua bisneta, a arquiteta Karina Leser Daudt. “A data que nós temos de família é 1914, a data que ele (o casarão) começou a ser habitado”, conta. “O meu apreço por essa casa é sentimental. É um apreço meu pela minha família, foi a casa que meu bisavô fez”, destaca Karina sobre ter a casa como patrimônio pessoal. Por outro lado, a arquiteta também destaca que a residência testemunhou importantes períodos na cidade, como a destruição da antiga igreja católica e a construção da nova igreja matriz, que hoje é a Catedral São João Batista.

Prédio da família Daudt é bastante conhecido pelas gaiutas. As quatro da foto foram construídas durante reforma na década de 1980

De acordo com Karina, a casa servia de residência para a família de seu bisavô e, nas peças da frente, sediava a coletoria estadual na época. Por um breve período, a casa deixou de ser propriedade da família Daudt, mas foi comprada de volta pelo pai da arquiteta. “Minha família não morava aqui em Montenegro, meu pai era engenheiro civil e, então, ele passou por vários lugares. Quando ele resolveu morar em Montenegro, ele fez questão de comprar essa casa e conseguiu comprar a casa de volta ali na década de 1980”, lembra a arquiteta. A casa só veio a ser desabitada há pouco mais de cinco anos.

Foi logo após a compra do imóvel por parte do pai de Karina que o prédio centenário passou por uma grande reforma. As esquadrias foram reformadas, o piso de madeira foi trocado por parquet, a escada que levava ao sótão foi mudada de lugar, um anexo foi construído entre a cozinha – que ficava separada da casa – e o prédio principal e um dos quartos foi transformado em banheiro. Foi durante essa reforma que a casa ganhou as quatro gaiutas – pequenas janelas no telhado – localizadas em sua lateral e que chamam muita atenção. Originalmente, ele possuía a da frente, ainda existente, e duas atrás, que foram fechadas.

Apesar das mudanças internas, a fachada do prédio foi conservada. E assim ela deve se manter, segundo o desejo de Karina. “Eu não pretendo desconfigurar o que ela (a residência) ainda tem de original, mas reabilitar para eu poder usar a casa”, explica a arquiteta. Para isso, ela sabe que terá que fazer altos investimentos e espera que possa haver incentivo público. “Eu tenho interesse sentimental para manter essa casa, mas, se não fosse isso, se fosse um outro proprietário, eu entendo a dificuldade que ele teria para conseguir manter uma casa desse porte”, observa Karina.

Casarão localizado ao lado da “praçinha da Matriz” foi construído pelo bisavô da atual proprietária

História se encontra nas paredes dos prédios históricos
Duas empresas tradicionais da cidade, a CGC Contabilidade e a Griebeler Advogados, estão sedias em prédios ainda mais tradicionais. Ambos os empreendimentos encontram-se em casas históricas da cidade que foram adaptadas internamente para suas novas funções, mas ainda preservam suas fachadas originais. Mais do que isso, o prédio que hoje abriga a Griebeler Advogados e antigamente foi sede do Sindicato Rural foi requalificado para manter aspectos originais também na parte interna do prédio.

Assim, em algumas paredes internas da empresa encontra-se um pouco da história à vista: a massa usada para erguer o prédio quase centenário era feita com barro e óleo de baleia. De acordo com o proprietário do prédio, Marcos Gilberto Leipnitz Griebeler, o material usado está bastante seco e sofre com a ação do tempo, por isso houve a necessidade de fechar as emendas com cimento em boa parte do prédio, mas em alguns pontos a massa original foi mantida e está exposta. “A gente só fechou, lá dentro ainda tem as juntas que são com barro”, reforça Marcos sobre as juntas que receberam cimento.

O advogado e contabilista diz que quando a casa foi adquirida teria sido mais fácil destruí-la do que restaurá-la e requalificá-la. “A porta da frente ainda é original. A gente fez uma técnica de recuperação, ela tinha 17 camadas de tinta. O pessoal só pintava em cima, claro, então a gente tirou e deixou ela original”, destaca. Além disso, o telhado foi trocado e voltou a ser com telha canoa, como o original.

Marcos Griebeler mostra massa feita com barro e óleo de baleia usada na construção do prédio

O prédio onde está a CGC Contabilidade também é quase centenário e serviu de residência para famílias tradicionais da cidade. Sua fachada original foi mantida, ocorrendo apenas mudanças na parte interna do prédio. Apesar do bom estado de conservação, a construção está exigindo altos custos de manutenção. “O muro estava caindo e nós gastamos perto de R$ 150 mil porque a casa começou a se mexer milimetricamente. Começaram a aparecer rachaduras, então tivemos que fazer estacas para manter a casa”, conta Marcos. Agora, uma nova intervenção subterrânea está sendo projetada.

“Eu acho importante preservar a nossa história. Tanto é que eu estou preservando. Não teria o porquê, mas estou preservando. E a gente investe, o custo é maior do que a manutenção de uma obra nova”, reforça o empresário. Marcos salienta que entende ser importante que o Município tenha uma legislação sobre o tema, bem como seja feita a atualização da lista de prédios com interesse histórico publicada junto ao decreto em 2012. “É importante, sim, a manutenção – sem dúvidas. A gente vai em alguns locais e fica muito feliz quando vê essas coisas assim, mas do outro lado também tem que entender. Tem que facilitar a vida do proprietário com alterações internas, todas possíveis, mas que ele mantenha a estrutura da casa”, comenta.

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