Pioneiras em Montenegro, Angélica e Fátima driblam o preconceito e comemoram união marcada pela cumplicidade
Em 2013, casais formados por pessoas do mesmo sexo receberam o direito de serem casados oficialmente perante a lei. E foi em fevereiro de 2015 que, vencendo os preconceitos da sociedade, o primeiro casamento foi realizado em Montenegro. Na semana passada, Maria Angélica Moretti e Fátima Ibarros Moretti comemoraram três anos de uma união marcada por muita cumplicidade e companheirismo. E, em sua casa, o casal recebeu o Jornal Ibiá para dividir um pouco de sua história.
Primeiro elas foram amigas. Fátima conta que viu Angélica pela primeira vez na sorveteria onde esta trabalhava. Ambas eram comprometidas com outras pessoas e quando se conheceram, tudo começou na amizade. Angélica foi a primeira a se separar da companheira que tinha. “Eu fiquei quatro anos sozinha, refazendo a minha vida toda”, relembra. “No meio disso, a Fátima estava passando tudo na vida dela. Ela também terminou o antigo relacionamento, aí a gente começou a conversar mais.”
O namoro, com o tempo, começou com cada uma em sua casa. “Ela vinha ficar comigo alguns dias da semana, e daí eu resolvi convidar ela para morar comigo”, conta Angélica. Foi após cinco meses vivendo juntas que o pedido de casamento foi feito. Fátima não esquece. “Nós estávamos no quarto, olhando TV. De repente, do nada – eu nem lembro como é que surgiu o assunto – essa aqui olhou pra mim e disse ‘Fátima, tu quer casar comigo?’”, relata.
“Eu fiquei meio branca, vermelha, roxa. Tudo o que era cor da bandeira gay, eu fiquei”, brinca. “Aí eu olhei para ela e perguntei se eu podia pensar. Ela disse ‘não!’ e eu ‘tá, eu aceito!’”. Angélica conta que o principal motivo por buscar o casamento em “papel passado” foi pela questão dos bens que ambas tinham. “Nós nem sabíamos que seria o primeiro casamento em Montenegro. A gente foi no cartório e ali ficamos sabendo”, revela.
Além das duas, apenas mais dois casais homoafetivos oficializaram sua união no município. Um em setembro e outro em dezembro de 2016. O casamento de Fátima e Angélica foi celebrado em uma pizzaria e contou com a presença de amigos, familiares e colegas de trabalho. Nas paredes da sala da família, até hoje, constam registros deste momento. Inclusive, ali, está a reportagem do Jornal que cobriu a histórica união. “Já estava tudo escrito pelo velho lá de cima”, afirma Fátima.
Lições para qualquer casamento
Sobre dividir a vida com alguém, Angélica e Fátima apontam que compatibilidade e diálogo são essenciais. “Tu tem que ser compatível com aquela pessoa, pelo menos em uns 60%. Hoje em dia, não tem como duas pessoas “fecharem” se elas não têm o mínimo de coisas que façam com que uma pense na outra. É amor, é calma, é ser seguro, é ser fiel com aquela pessoa”, avalia Angélica. Ela conta que o casal compartilha muitos dos mesmos gostos e que respeita os pontos onde há divergência.
“E tudo é na base do diálogo”, complementa Fátima. “Tudo e qualquer coisa, a gente senta e conversa se dá ou se não dá. Isso que as duas são brabas. De vez em quando até dá uma quebrada nos pires, o que é normal, mas qualquer assunto, nós conversamos”. “É uma vida boa. Uma vida calma. Eu realmente encontrei a minha paz. É isso o que eu desejo para as pessoas que estão em busca de alguém”, diz Angélica. O apoio que uma dá a outra é, segundo elas, o que move o casamento.
Lutando contra o preconceito
Em maio de 2011 – dois anos antes da liberação do casamento – ocorreu a liberação da união estável entre pessoas do mesmo sexo. Ambas foram consideráveis vitórias em um país que, segundo o Grupo Gay Bahia – organização que contabiliza a violência contra lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) – registrou, em média, um assassinato de pessoas LGBT a cada 19 horas em 2017. Foi a maior contagem desde o início do levantamento, há 37 anos. “As pessoas não entendem que o que tu é na parte sexual não é o teu caráter”, lamenta Angélica.
“Acho que tem que começar a haver mais respeito pelo ser humano. O preconceito existe contra tudo e, às vezes, tu nem conhece a pessoa e já nem aceita ela.” Juntas, o primeiro casal a oficializar casamento em Montenegro avalia que, frente ao triste índice nacional, é bem aceito pela comunidade. “Eu pertenço a um grupo espírita e todo mundo me aceita. Aliás, nem é aceitar, é respeitar. Porque para chegar a matar ou a queimar uma pessoa. Nossa, que dureza. No que é que aquela pessoa te incomoda tanto?”, pontua Angélica.
Ela tem, hoje, 51 anos e trabalha como auxiliar de TI em um escritório contábil. Fátima tem 46 e está afastada do mercado de trabalho devido a um problema de saúde. Ambas relatam que jamais foram vítimas de preconceito. No dia a dia, no entanto, tomam certos cuidados.
“No máximo, quando a gente sai, nós saímos de braços dados”, conta Fátima. “Nós não nos beijamos. A gente se encontra, dá um beijo na testa ou no rosto, mas não ficamos nos ‘fresqueando’, porque a gente não sabe do preconceito das pessoas e a gente não conhece exatamente como elas são. Então, vamos manter o respeito. Por nós, principalmente, e, em segundo plano, com os outros.”
“Nós achamos que isso é importante para nós”, complementa Angélica. “Tu já é maduro e não precisa estar mostrando para os outros as coisas tuas que são íntimas. Isso é de cada um. Se tu quer se expor, se exponha, mas podem haver consequências. Todos sabem que nós somos um casal, mas nós preferimos nos preservar”. “Nós casamos porque nos amamos e ponto final. Não foi para afrontar ninguém”, completa Fátima.
Filhas do coração
Fátima conta que nunca quis ter filhos biológicos, mas sempre sonhou em adotar uma criança. A conhecida demora no processo de adoção, no entanto, a fez desistir do sonho. “Eu estou com 46 anos e a Angélica vai fazer 52. Esse processo de adoção já demora muito. Aí, se um juiz tiver um pouquinho de preconceito, ele já vai dizer que não, o que é um pecado”, lamenta.
“Tem tanta criança jogada na rua, sendo marginal. E a gente aqui querendo dar uma base familiar, com valores, amor e compaixão. Tudo o que os nossos pais passaram para nós, nós queríamos passar para o nosso nenê”, coloca. A lei da adoção não traz nenhum impedimento para casais do mesmo sexo, mas sim, está condicionada ao julgamento de um juiz. E é demorada. Apesar da decepção com a situação, a família Moretti é feliz com suas duas filhas do coração. E ambas já são até vovós.
A primeira filha é de Angélica, que criou uma menina em seu relacionamento anterior. “Hoje ela tem 34 anos, é casada e tem dois filhos. Ela é linda. Vem aqui, traz as crianças. Elas gostam muito da Fátima e até ficam com ela”, conta a mãe emprestada. E a segunda é uma sobrinha e afilhada de Fátima, para a qual também é dedicado muito amor materno do casal. Hoje, ela está com 18 anos. O plano da família é que os bens construídos no casamento sejam separados entre as duas filhas no futuro.
Se assuma como você é!
“Pra ti ser feliz de verdade, tu tem que dizer para todo mundo: eu sou gay! Tu quer me aceitar, tu me aceita. Aliás, nem é aceitar. É respeitar”, afirma Fátima. O casal encerrou sua conversa com o Jornal falando diretamente a quem seja homossexual, mas tem receio de assumir sua realidade para a família e o restante da sociedade. “Tem que dar a cara a tapa. Porque se tu ficar guardando isso pra ti, então tu gosta de sofrer.”
“Seja corajoso e enfrente este seu medo”, corrobora Angélica. “Não vale a pena, num mundo que nem hoje, tu ficar prestando atenção no que os outros acham. Tu não veio para esta vida para não ser feliz. Se quiser, venha conversar com nós, não tem problema. Quantas mães me procuraram até hoje para dizer que achavam que o filho era gay. Eu só pergunto: ‘tu vai deixar de amar teu filho?’ Não. O amor é muito forte.”