Casal da Fortaleza resgata uma prática milenar, que ficou perdida no tempo
Na mesa, um café da manhã nutritivo e saboroso. Moradores da localidade de Fortaleza, no interior do município, o casal Graciela Santos e Éder Fernando Müller, junto do filho Emanuel, de 2 anos e 8 meses, servem-se de pratos feitos com matéria-prima preponderantemente de sua propriedade.
O “suco verde” é produzido com limão, hortelã e a planta ora pro nobis – rica em ferro e com 25% de proteína. À milanesa, foram preparadas folhas da planta assa-peixe (ou mata-campo), usando ovos, leite e manteiga de produção própria. Como acompanhamento, uma salada temperada feita com biomassa obtida a partir de banana-verde, plantada na propriedade, com maionese dijon e azeite de oliva.
É tudo uma delícia. A refeição, além de fruto do trabalho que a família realiza no meio rural – com grande preocupação com a sustentabilidade –, representa uma prática que, aos poucos, está ganhando seu espaço: o consumo de plantas como alimento. A ora pro nobis ou a assa-peixe, por muitos são consideradas brejo ou inço. Para o casal, são comida. São “Plantas Alimentícias Não Convencionais”, as Panc.
O termo Panc foi criado pelo biólogo gaúcho Valdely Kinupp e refere-se a essas plantas que podem ser consumidas e surgem de forma espontânea em quintais, terrenos baldios e canteiros. O estudioso estima que existam mais de 10 mil espécies com este potencial alimentício no país. Graciela e Éder ainda não completaram a identificação delas em sua propriedade, mas já garantem que, ali, têm mais de 100.
Quem pensa em planta comestível logo visualiza a pessoa andando pelos campos e colhendo o “mato” para comer. Essa pode, sim, ser uma prática, mas não é a única. A receita da assa-peixe à milanesa é exemplo disso. “Tu pode transformar um produto nutritivo em algo que agrade ao paladar. A internet está cheia das receitas mais diversas e tem até restaurantes com chefes se especializando só em Panc”, conta Graciela.
Como surgem de forma espontânea – tanto que muitas são caracterizadas como inço – as plantas do tipo nascem em quase qualquer lugar, não necessitando manejo. Em poucos metros percorridos na propriedade em Fortaleza, o olho apurado do casal achou diversas espécies com potencial gastronômico e, acima de tudo, nutricional. “Elas nutrem e têm poder medicinal” ressalta a agricultora.
Um conhecimento milenar que se perdeu no tempo
O consumo de plantas como alimento não é coisa de hoje. Graciela avalia que o uso das Pancs é um verdadeiro resgate da alimentação dos nossos ancestrais e lamenta que o conhecimento, por muito tempo, tenha se perdido. Ela teve o primeiro contato com a prática há cerca de quatro anos, quando a família havia acabado de se mudar para Fortaleza, na casa que pertencia a sua bisavó.
Éder seguiu – ainda segue – trabalhando em sua profissão como comissário de bordo e Graciela começou a buscar alternativas para ter uma segunda renda que viesse da terra.
No meio disso, ela foi convidada a participar de uma palestra com um engenheiro agrônomo da Emater e, lá, conheceu as Pancs. Em um dos slides de apresentação, o palestrante mostrou a bertalha – planta comestível com alto valor nutricional e que, para ela, era apenas mato. “Foi ali que eu descobri que o brejo poderia ser transformado em alimento”, resume.
O marido também se interessou pelo tema e os dois começaram a se dedicar a um intenso trabalho de pesquisa, com palestras, leituras e conversas com especialistas. Também compraram o livro do biólogo Valdely Kinupp, que os auxiliou muito na identificação das espécies comestíveis que tinham na porta de casa.
Os dois viviam pelo campo, com o livro na mão, fazendo os apontamentos. Até a mãe de Graciela ficou surpresa com algumas das descobertas, dizendo que sabia que a avó – dona original da propriedade – consumia isso ou aquilo, mas não imaginava se tratar de tais plantas, tão comuns.
Língua de vaca, azedinha, trapoeraba, picão-preto, araruta e capuchinha foram algumas das identificadas. Os nomes acabam variando, pois cada planta adquire um título popular, dependendo da localidade em que floresce. O casal da Fortaleza está trabalhando para ter as Pancs como atração na Rota Turística Fortaleza, que vai passar por sua casa e está nas etapas finais de planejamento para ser inaugurada.
É preciso atenção e cuidado
Não é só sair por aí comendo plantas sem controle. É preciso atenção e cuidado. Graciela avalia que é justamente o medo na identificação que impede o consumo das Pancs de ser mais difundido. Mas indo atrás de estudos e conversando com pessoas entendidas no tema, ela garante: a prática é segura.
“Tem muitas Pancs que todo mundo conhece. Outras, nem a gente teria visto se não tivesse ido atrás”, complementa Éder. A dica é procurar autores de confiança, como o citado Valdely Kinupp, seja em publicações impressas ou online. Além da própria identificação das espécies, uma fonte de dados é importante para indicações de consumo. Nem todas as plantas, afinal, podem ser comidas cruas.
Também usadas com fim ornamental, as Pancs têm a funcionalidade de serem encontradas em praticamente qualquer lugar. Mesmo nessa questão, no entanto, é preciso cuidado. No meio urbano, é importante que não se consuma plantas que nasceram a menos de 200 metros do asfalto, por causa do gás carbônico absorvido. Perto de cemitérios ou de esgotos, vale o mesmo critério. Outra atenção especial tem que ser dada em locais onde a propriedade vizinha faz o uso de agrotóxicos, principalmente se o terreno for em declive.
Conheça algumas Pancs presentes na propriedade do casal
Amaranto – É fonte de betacaroteno, vitamina C, magnésio, ferro e potássio. Suas folhas e flores podem ser consumidas cozidas, em refogados, farofas e pães. O consumo cozido é o mais indicado. Sementinhas, ainda, podem ser tostadas e utilizadas como complemento alimentar.
Folha do cravo-de-defunto – Utilizada pelos antigos como um repelente natural para as pragas, as folhas são muito saborosas. Conferem ao prato onde são colocadas um sabor que lembra a mistura de hortelã com limão. É indicado no tempero de carnes e peixes.
Araruta – Seus rizomas – quase umas batatinhas – são utilizados para fazer o polvilho de araruta. Pode incrementar massas de bolos e pães, dando liga e aumentando o valor nutricional dos alimentos, devido a sua propriedade rica em carboidratos, cálcio e fibras.
Dente de Leão – Muito usada nos sucos “detox”, a planta tem vitaminas A, B e C. Popularmente, suas raízes são conhecidas como diuréticas. Suas folhas e raízes podem ser consumidas cruas ou refogadas. Suas flores comumente são usadas em saladas ou feitas à milanesa.
Capuchinha – Costuma vir em três cores de flor e, quanto mais escura a tonalidade, mais forte é o sabor. A planta é parente distante da mostarda e da rúcula, tem folhas picantes e muito saborosas, usadas em saladas, omeletes, patês e até em tortas. Rica em vitamina C e flavonóides, é toda comestível. Suas folhas abrem o apetite e facilitam a digestão.
Serralha – Toda ela pode ser consumida, cozida ou crua. A planta é rica em vitaminas A, B, e C, cálcio e ferro. As flores e botões podem ser feitos à milanesa ou à dorê. Os caules podem ser usados para conservas, tipo aspargo. A serralha não é exigente quanto ao clima para se desenvolver e se propaga facilmente, com o vento carregando suas sementes.
Picão-preto – Deve ser fervido antes. Rica em vitaminas e minerais, como o magnésio, o ferro e o potássio, tem um sabor picante. Suas folhas podem ser utilizadas em sopas, no arroz ou em omeletes. Desidratadas, podem ser misturadas com a farinha, a fim de enriquecer o pão.
Bucha Vegetal – Conhecida popularmente por virar uma esponja vegetal, depois de seca, a bucha, quando nova, também pode ser consumida. Neste caso, tem as mesmas características e propriedades de uma abobrinha, podendo ser comida como tal.
Azedinha – Rica em vitaminas B e C, além de cálcio e outros minerais. Tem propriedades para ação diurética, febrífuga, anti-inflamatória e desintoxicante. Pode ser consumida junto de saladas verdes, proporcionando um sabor azedinho ao prato, semelhante ao limão. Também é aplicada no preparo de refeições quentes, como sopas, ou adicionada a sucos.
Major Gomes – Suas folhas têm proteínas, cálcio, ferro e potássio, são macias e têm sabor refrescante. Cozidas, essas folhas são complemento para qualquer prato – picadas no macarrão ou acompanhando a carne, por exemplo. Sua raiz é suculenta e suas sementes, depois de secas, podem ser usadas em substituição à semente de papoula.
Língua de Vaca – É uma hortaliça folhosa que nasce em terrenos mais úmidos. É um substituto rústico e abundante para a couve, podendo ser consumida crua, cozida ou refogada. Possui compostos fenólicos e antioxidantes e comumente é usada em sopas, farofas ou massas.
Trapoeraba – Para consumo humano, só é recomendada a espécie de folha verde. É uma planta que cresce e se propaga rapidamente, sendo rica em proteínas, cálcio, magnésio e zinco. Comumente é consumida crua, em uma salada, ou em suco.
Beldroega – Fonte de ômega 3 e vitamina C, a planta também tem grande potencial antioxidante. Podem ser consumidas as folhas, flores, ramos e sementes, cruas, em saladas, ou cozidas, em diversos pratos. As sementes substituem a chia e o gergelim em pão. Encontra-se, normalmente, em solos ensolarados.