Trens foram úteis no transporte e no aquecimento da economia regional, principalmente em Montenegro
Durante a paralisação dos caminhoneiros, há duas semanas, diversos comentários e fotos de mapas da malha ferroviária do Estado surgiram nas redes sociais. O debate sobre a extinção e diminuição dos serviços das linhas ferroviárias ganhou força e muitos lembraram as facilidades da época dos vagões sobre trilhos. Além disso, com os caminhões parados, todos sentiram o quanto o país depende do transporte rodoviário para as cidades funcionarem normalmente.
O deslocamento de cargas feito por trens também teve seus altos e baixos, tornando-se menos cômodo para as empresas que necessitavam receber as encomendas na porta dos estabelecimentos. No entanto, foi para escoar a produção agrícola da Serra Gaúcha que a linha Montenegro-Caxias foi inaugurada em 1909.
Por volta de 1945, o Rio grande do Sul chegou a ter cerca de 3.659 quilômetros de trilhos de ferro, ligando a capital Porto Alegre à diversas cidades do interior, transportando cargas e passageiros para todas as regiões do estado. O primeiro caminho de ferro tinha 33 quilômetros de extensão, oito estações e seguia de Porto Alegre até São Leopoldo. O projeto foi inaugurado em 15 de abril de 1874.
Atualmente, os trilhos da antiga linha ferroviária que passavam na região não existem mais, restando apenas memórias fotográficas, ruínas, réplicas e estações restauradas. Conforme dados da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), em 2016, o estado possuía aproximadamente 3.259 quilômetros de linhas e ramais ferroviários utilizados somente para o transporte de cargas.
Poucos sabem, mas pequenas cidades como Maratá recebiam variadas cargas de produtos que eram despachados nos armazéns à beira dos trilhos de ferro. A movimentação trazia bons resultados na economia local e tornava o povoado um dos mais prósperos da região, sendo uma espécie de polo comercial para os agricultores de Brochier, Paverama, Poço das Antas e comunidades vizinhas.
Veja, a seguir, histórias e curiosidades desta obra que alavancou o comércio regional e trouxe grande crescimento para a região entre Porto Alegre e Caxias do Sul. Mais do que isso, foi motivo de muito orgulho aos cidadãos e promoveu grandes encontros entre pessoas.
O início da história ferroviária motivado pelos imigrantes
De acordo com o pesquisador de histórias da região, Ernesto Arno Lauer, a colônia de italianos da Serra Gaúcha começava a produzir grandes quantidades de produtos nas propriedades rurais. Lenha, galinha, farinha e outras cargas eram transportadas por carretas puxadas por tração animal ao longo da rodovia Buarque de Macedo, hoje BR-470. A viagem seguia até o Porto das Laranjeiras, às margens do rio Caí, em Montenegro.
Por causa das cheias ocasionadas pelo grande volume de chuva, muitos produtos eram perdidos e uma obra para elevar a altura do porto foi idealizada pelo intendente Álvaro de Moraes. Com o problema resolvido, surgiu o Cais do Porto das Laranjeiras, que melhorou as condições de escoamento da produção agrícola trazia pelos italianos e produtores da região. Porém, o custo aumentava e já estava sendo inviável o antigo método de frete.
A partir deste período, por volta de 1905, iniciaram as tratativas para a construção da estrada de ferro, a qual partia de Novo Hamburgo passava por Montenegro e chegaria até Caxias do Sul, em 1910. “Quando o trem chega até a Serra, as mercadorias vinham nos vagões e eram deixadas no porto para serem levadas pelo sistema hidroviário”, afirma Ernesto. Os barcos também foram essenciais para a construção da ferrovia, pois eram eles que traziam o material para a obra. “Havia um ramal (linha subsidiária que liga um local distante da via principal) até o rio e fazia o trajeto onde hoje é a rua Ramiro Barcelos. Esse caminho era usado para pegar os insumos que vinham em barcos”, revela o pesquisador.
A comodidade teve um peso maior
Na época, os caminhões demoravam cerca de dois a três dias para o translado de mercadorias e as condições das rodovias não favoreciam uma agilidade aos veículos. No entanto, os trens e barcos também tinham uma desvantagem, pois os comerciantes pagavam dois fretes a fim de receberem as cargas na porta dos estabelecimentos. “Foi um erro a Viação Férrea não entregar as encomendas aos comércios e isso fez com que perdessem a clientela”, afirma o pesquisador Ernesto Arno Lauer. Para o pesquisador, o conforto falou mais alto e os caminhões passaram a oferecer um serviço melhor.
Os vagões cargueiros continuaram levando outros materiais, entre eles combustível. Entretanto, nos anos 1950 aparece o asfaltamento da estrada entre São Leopoldo e Montenegro, que passava pelo Rincão do Cascalho e oportunizou o escoamento da produção por veículos. “Não deveriam deixar ‘morrer’ a locomoção ferroviária. O Polo Petroquímico precisa de grandes equipamentos e o trem poderia facilitar este trabalho”, desabafa.
Após as linhas ferroviárias serem desativadas, Ernesto conta que a melhoria das vias interioranas contribuiu para o transporte de passageiros por meio dos ônibus.
Um futuro promissor era esperado
Talvez se o escritor Oscar Pedrotti estivesse acompanhando os dias atuais teria certa frustração com o transporte de cargas e passageiros sobre trilhos de ferro. Em seu texto de 1975, publicado no livro Montenegro de ontem e de hoje, ele escrevia sobre um futuro positivo para as ferrovias. “Seus trilhos gemerão outra vez por toda parte sob o peso de novas locomotivas, brilharão novamente sobranceiros pelos caminhos de outrora; e as ferrovias, não temendo concorrência, triunfarão da frustração das suas atividades passadas”
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A atualidade nos mostra que o triunfo veio dos caminhões e do transporte rodoviário. No entanto, estes enfrentam momentos turbulentos e, no final de maio, chegaram ao limite, iniciando a grande paralisação que todos os brasileiros assistiram e sentiram. Desde então surgiram debates aleatórios sobre a malha ferroviária do Rio Grande do Sul.
Oscar Pedrotti, sem saber o que viria no século seguinte, de certo modo previu a importância do sistema ferroviário: “… reconhecer-se-á a utilidade das ferrovias, como o reconheceram países desenvolvidos, de notável progresso, e tudo será melhor porque mais aperfeiçoado pelo avanço tecnológico”. Porém, os governos pareceram não olhar adiante.
Estação Montenegro ontem e hoje
A empresa belga Compagnie Auxiliaire de Chemins de Fer au Bresil foi responsável pela construção e inauguração da estação de Montenegro, em 1909. Principal parada da região, também era o ponto de bifurcação entre a linha que seguia a Caxias, com início em 31 de maio de 1910, e a linha Barreto, onde os trens percorriam o trajeto Porto Alegre-Uruguaiana até 1938. Após este período, as locomotivas que transitavam em terras montenegrinas tinham somente um destino: a Serra Gaúcha.
O local era estruturado, possuía restaurante, que ficava num anexo em madeira, e recebeu reformas arquitetônicas bem como um segundo pavimento. As instalações eram necessárias para oferecer conforto aos passageiros que viajavam por longas distâncias e faziam paradas ao longo do caminho. Por ter localização privilegiada, a cidade estava ligada a todas as linhas férreas do Estado.
Conforme a segunda edição do livro Montenegro de ontem e de hoje, de 1982, o então secretário do município, José Cândido de Campos Netto havia escrito no “Relatório do Intendente Municipal de Montenegro”, em 1917, as boas perspectivas e a força econômica da cidade iniciadas após a criação da estrada de ferro. Adaptando para a forma escrita atual, o secretário escreve o seguinte trecho: “… Devido, portanto, a sua vizinhança com a capital do Estado e meios de fácil transporte para os demais municípios do Estado e Brasil inteiro, Montenegro está destinado fatalmente, queiram ou não, a ser um centro industrial de primeira ordem, sendo certo, inegável, ineludível o futuro promissor que o aguarda”.
Depois dos mais de 80 anos, em 1994, a linha em Montenegro foi oficialmente extinta. O transporte ferroviário foi perdendo força, mesmo que apresentasse vantagens na qualidade, preço e capacidade de carga. Aqueles tempos prósperos foram esquecidos e os gaúchos preferiam utilizar as rodovias.
Inaugurada em 2006, a Estação da Cultura é a renovação da estação ferroviária. Dois anos antes, a restauração do espaço havia sido anunciada, sendo foi beneficiado pela Lei de Incentivo à Cultura (LIC). O segundo prédio e o antigo restaurante foram, da mesma forma, reformados e entregues para a comunidade. Hoje, a área abriga museu, órgãos da prefeitura, eventos culturais, exposições e salas para eventos.
Ernesto Lauer lamenta que os trilhos tenham sumido da do chão e da história da região. “Hoje sentimos as perdas e se tivéssemos conservado este patrimônio poderíamos ter outros ramais e novos destinos”, reforça. Segundo o pesquisador, os governos deixaram “a Deus dará” e a falta de planejamento teve contribuição para o cenário atual. O pouco interesse da população também foi fundamental no processo de extinção dos trens. “As pessoas não se importaram com a ferrovia. Não teve movimentos para exigir a permanência do meio”.
Maratá era movimentada com a rede ferroviária
Bem longe de ser um município, Maratá já era conhecida e movimentada na época em que a Maria Fumaça e o trem Minuano (movido à Diesel) transitavam pelo povoado. No acervo histórico do município, constam informações sobre a linha, a qual era objetivada pelas necessidades de desenvolvimento da região colonial.
Conforme dados expostos na Casa do Turista (réplica da antiga estação marataense), em 1948 foram transportadas 151.949 toneladas brutas de Caxias a Montenegro. Isso representava uma média de 416 mil quilos por dia. No sentido contrário, 130.442 toneladas eram carregadas pelos vagões no mesmo ano. As carretas puxadas por bovinos vinham de longe, traziam mercadorias produzidas nas propriedades rurais e movimentavam os armazéns à beira da via de ferro. No trecho havia 15 estações, a maioria pequenas, mas todas foram palco grandes histórias.
A professora aposentada, Neli Glória Plass diz que eram muitos moradores da região que levavam seus produtos para Maratá, tornando a comunidade um centro de comercialização. “A produção regional de leite era trazida até a leitaria a qual produzia manteiga e despachava pelo trem”, relembra Glória. Parte das vendas era realizada na Rua da Conceição, atual túnel da Conceição, em Porto Alegre.
Segundo a professora, a pacata cidade era visitada por muitas pessoas, principalmente na época das festividades de Kerb. “Os vagões de passageiros vinham lotados e alguns até ficavam nas linhas suplementares da ferrovia, pois as pessoas ficavam quatro dias para as festas”, conta. Glória também destaca a segurança das viagens. Além disso, ela também fala do ponto de ligação do Vale do Taquari para a Capital Gaúcha. “Na época quem morava em Lajeado e Estrela vinha de ônibus até Maratá e daqui iam com a locomotiva até Porto Alegre”.
Um ramal foi criado até o parque da cascata Vitória. Lá, pedras eram carregadas para a obra do novo caminho à Serra Gaúcha. A professora revela que as rochas eram explodidas, provocando marcas nos grandes paredões,podendo ser observadas nos dias atuais.
No pequeno povoado de imigrantes alemães restaram, de forma original, a plataforma de embarque e a caixa de água que abastecia a Maria Fumaça. No parque municipal da Oktoberfest um calçadão foi construído no antigo caminho de ferro, e a Casa do Turista foi erguida onde antes estava a Estação. A nova construção segue os moldes e o formato da antiga, demolida após a extinção da ferrovia ao fim dos anos 1970. “Foi uma grande perda para a identidade do lugar. O trem faz uma falta enorme para o turismo”, aponta Glória.
O primeiro túnel em curva
A linha ferroviária Montenegro-Caxias do Sul também foi uma obra histórica. Inaugurado em 1907, com 93 metros de comprimento, o Túnel de Linha Bonita Alta, em Salvador do Sul, é considerado o primeiro túnel curvilíneo da América Latina. Atualmente o local é utilizado como ponto turístico, estando em boas condições de conservação e faz parte de rotas turísticas.
Os trilhos que movem a atualidade
As cidades de Montenegro e Brochier abrigam, hoje, os trilhos de ferro da Malha Sul, concedida à empresa Rumo Logística (antiga América Latina Logística) até 2027. A linha serve como canal de transporte até a região sudeste do Brasil. Os vagões servem à construção civil, siderurgia, florestal, consumo, petroquímico, fertilizantes, contêineres. Além disso, transportam combustível, fertilizantes, milho, trigo, soja, farelo, óleo vegetal e açúcar. Entre as empresas atendidas pela Rumo estão as do Polo Petroquímico, Masisa, Frangosul, entre outras.