Josiane Lencina da Luz conta a sua trajetória de vida, uma história inspiradora de aceitação e vitórias sobre o preconceito
Estimativas indicam que existem cerca de 20.000 pessoas com nanismo no país. Sofrendo de uma anomalia no crescimento, elas têm sua altura variando entre 80 centímetros e 1,40 metro. Nas ruas, são vistas por muitos com olhares desconfiados e curiosos. A montenegrina Josiane Lencina da Luz, 36 anos, é uma dessas pessoas.
Trabalhando já há treze anos como assistente em uma escola de educação infantil do município, ela dá exemplo de força, auto estima e determinação. Semana passada, Josinha, como é conhecida, reservou alguns minutos do seu dia para dividir um pouco de sua história com os leitores do Jornal Ibiá.
“A minha mãe já portava o nanismo. Ela tinha 1,17 metro. Meu pai tem estatura normal, com 1,65 metro. E eu saí média, um pouco maior que ela, com 1,22 metro. O avô da minha mãe era portador do nanismo e a tia dela também. Daí ela veio a conhecer o meu pai e aconteceu de vir eu”, conta Josinha. Ela é filha única. Seus filhos, ela explica, poderão ou não ter o nanismo. Normalmente, a condição pula uma geração.
Ter a mãe na mesma situação foi, em certo ponto, positivo, por possibilitar a transmissão das experiências à filha. Na escola, ainda na infância, Josinha teve algumas dificuldades de aceitação, mas as orientações da família permitiram que ela passasse pelo período de forma mais tranquila. “Meus pais sempre me orientaram e me guiaram na forma de agir. Até quando as pessoas perguntavam alguma coisa, porque elas não têm culpa de não saber.”
Josinha lembra que a mãe era mais brava e fechada e não gostava muito de responder. “Mas ela me ensinou de um modo diferente”, relata. “Eu respondia sempre normal as curiosidades, de como era e como não era. Até como era a minha casa perguntavam.” Em uma época em que a aceitação e a acessibilidade eram ainda menos comentados e praticados, Josinha viu a mãe passar por diversas dificuldades. “Tinha aqueles ônibus antigos. Coitada, ela tinha que ficar de joelhos para conseguir subir”, relembra. “Hoje já está mais acessível.”
Quando Josinha tinha 19 anos, a mãe faleceu. “Aquilo me desestruturou muito. A mãe é toda a base de uma família e eu tive que aprender muita coisa que eu não sabia, praticamente sozinha”, conta. Ela lembra que o apoio da tia e dinda Janete foi imprescindível nesta etapa de sua vida. “Ela é a minha segunda mãe. Ela me adotou e segurou a barra quando a mãe faleceu. Eu faria qualquer coisa por ela.” Josinha ainda tem o pai.
Curiosidade das pessoas já não incomoda
“As pessoas não têm culpa de terem curiosidade (em relação ao nanismo). Talvez nunca tenham tido contato. De repente, tu vai numa cidade e ninguém nunca viu um e até acredita que não existe”, opina Josinha. Ela conta que sempre responde a todas as duvidas. Extrovertida, é respeitada pela mulher que que se tornou. “Acho que o pessoal me conhece por eu ter o nanismo e não ter fronteiras. Onde eu tiver que ir, eu vou. Sou bem independente.”
No trabalho, na escola de Educação Infantil, às vezes chegam os questionamentos dos pequenos, curiosos sobre a altura da assistente. “Com o tempo, eles vêm me perguntar: ‘tia, por que que tu é pequena?’ Daí eu até brinco eles, porque tem uns que não gostam de comer. Então eu digo: ‘É que a profe não comia quando era pequena, então agora não adianta’”, conta. “Claro que a gente não pode botar medo neles para comer, mas foi uma maneira que eu usei e os pais até me agradecem.”
Josinha mora sozinha. Em sua casa, nenhum móvel é feito sob medida para a sua altura. “Mas eu tenho o meu banquinho, pra alcançar a máquina de lavar, por exemplo. É tudo normal. Eu não dependo de ninguém”, frisa. “Minha dica para as demais pessoas com nanismo é que elas apareçam mais, se mostrem mais e se aceitem mais. Isso não é um castigo. Não foi em vão que elas nasceram assim.”
Mãe optou por não dar hormônios
Quando nasceu, 36 anos atrás, as tecnologias não permitiam que os pais de Josinha soubessem antes do parto que ela portava o nanismo. “Hoje, faz o teste e tem como saber. Mas a minha mãe só foi descobrir depois que eu já tinha nascido. Foi o meu tio, o primeiro que me viu e foi dizer pra ela: ‘a Josi – a Josinha, desde então – vai portar o nanismo”, aponta. O tronco normal e os membros curtos já indicavam a condição do bebê.
“Até foram oferecidos os hormônios que eu poderia ter tomado. Eu ia crescer uns 15 centímetros, nem ia mudar muito. Daí a mãe disse ‘não, se Deus quis assim, vai ser assim’”, recorda. Josinha não se arrepende da decisão da família, mas considera que, se tiver um filho, talvez opte pelo uso dos hormônios. “Porque a gente sofre. O olhar, o tocão daquela pessoa que nunca te viu. No dia em que eu vier a ter um filho e ele vier a portar, eu vou dar toda a educação que eu tive, mas sou capaz de dar hormônio sim, pra ele crescer um pouquinho mais.”
Atenção redobrada à saúde
“A imunidade de quem porta o nanismo é baixa. Mais baixa do que a de qualquer outra pessoa. Qualquer doença que tu pegar, se ela se agravar ou se estender, pode levar à morte”, diz Josinha.
A educadora começou a procurar acompanhamento médico após o falecimento da mãe e tenta cuidar da alimentação e manter atividades físicas regulares. Existem casos de complicações do nanismo que podem reduzir a expectativa de vida da pessoa, mas não é regra geral. “Já vi senhorzinhos de 70,80 anos. Depende muito da rotina que se leva”, avalia.
Os primeiros passos no mercado de trabalho
Josinha trabalha há 13 anos numa escola de Educação Infantil. Este é o seu quarto emprego. Ela lembra que, no período anterior a 2004 – data em que o nanismo foi incluído na lei de cotas para deficientes – conseguir um emprego era uma tarefa complicada. Quando os possíveis empregadores enxergavam sua condição, a chance era perdida.
O primeiro trabalho conquistado foi em uma fábrica de calçados em Maratá. “Lá eu fui muito bem aceita. Cortaram até uma mesa para ficar normal na minha estatura. Eu era revisora de calçados”, comenta. Saindo dali, ela foi trabalhar de babá em uma casa de família, nos finais de semana. “Eu ia na sexta e voltava na segunda porque os pais viajavam muito. Eu tenho muito a agradecer a eles.”
Josinha carrega até hoje um sentimento de carinho pela família que a acolheu e lhe confiou o cuidado da filha. “No primeiro final de semana, eu lembro que dormi em um colchão no chão, com ela, até eles mandarem fazer um degrau para a escadinha do berço, que era enorme”, relembra. “Eles foram maravilhosos. Fizeram de tudo para que eu me sentisse em casa. Eu só saí dali para crescer e pegar em um emprego fixo.”
Foi então que Josinha começou a trabalhar como cobradora de ônibus, posto que lhe permitiu conhecer e ser conhecida por muitos montenegrinos, por seu bom-humor e alto-astral. “Eu fiz muita amizade por lá. Tenho saudades do pessoal”, diz. Hoje, já na escola, o sonho é fazer faculdade de Educação Física. “Eu sei que eu não tenho o perfil da Educação Física, mas é uma coisa que eu gosto muito, me identifico e quero fazer.” Sem dúvida alguma, determinação não lhe falta.
Problemas na hora de tirar a CNH
Pouco antes de dar sua entrevista ao Jornal, Josinha esteve no Centro de Formação de Condutores (CFC) buscando marcar todo o processo para conseguir sua carteira de motorista. A ideia era aproveitar o valor do 13º salário e investir na novidade, que lhe traria ainda mais independência. Ficou surpresa ao saber, no entanto, que o estabelecimento não tem nenhum veículo adaptado para a sua condição. Indicaram que fizesse as aulas e a prova prática em Canoas.
“Me disseram que era raro e que nem para cadeirante tem”, revela, indignada. “O dono do CFC até se colocou à disposição para dar uma força no que precisar, mas eu vou batalhar para fazer aqui.” Além de todos os dias de deslocamento para Canoas e o movimento maior de veículos, a falta de acesso ao serviço para ela em Montenegro é o que mais mexe com Josinha. Ela afirma que vai batalhar pelo seu direito. Mais uma vez.
Representação dos anões na mídia ainda é muito pequena
Por muito tempo, as pessoas com nanismo foram representados pela mídia somente com um viés cômico, muitas vezes associadas ao circo e ao anormal. A atual novela das 21h da Rede Globo, “O Outro Lado do Paraíso”, tem chamado atenção ao representar uma personagem com nanismo de uma forma mais humana, falando sobre aceitação pessoal, relação familiar e vida amorosa. Para Josinha, no entanto, a dramaticidade da retratação é exagerada.
“Ela faz muito coitadismo e mimimi, sendo que é uma coisa simples”, opina. “Quem sabe a mãe da personagem tenha escondido ela de algum jeito, mas ela é uma menina estudada, que foi para o exterior e que tem faculdades. Ela era para ser muito mais alto astral.” Apesar da crítica, Josinha reconhece a importância da representatividade, fugindo do lado cômico. “Acho que quem ainda tem aquela vergonha e que não tem o seu ego alimentado, vendo aquilo, é capaz de se soltar mais. A novela serve para mostrar o ‘eu posso, eu quero e eu consigo’.”
Autoaceitação é o primeiro passo para viver plenamente
Viver com nanismo e ser olhado diferente, assim como para qualquer minoria, não é fácil. O primeiro passo, na busca da aceitação, é aceitar a si mesmo e amar a pessoa que se é. Josinha conta que, durante a infância, chorava muito por não querer ser diferente dos demais coleguinhas. Foi o tempo e a orientação dos pais que a tornaram a mulher forte que ela é hoje.
“Hoje eu sei me defender, eu me aceito como eu sou e eu me considero uma vencedora na vida”, declara, orgulhosa. Ela deixa no passado os olhares tortos, as risadas, o anseio que tinha quando criança, o medo, enquanto adolescente, de que ninguém iria querer ficar com ela. Tudo isso lhe dá forças e forma a base de quem ela se tornou. “Pra me completar, agora, eu só quero ter um filho. Eu acho que, se eu tiver um pedaço de mim, daí eu tenho tudo”, completa. Então, que venha o mais novo membro da família Lencina da Luz.