Nesse final de semana, manifestações pelo País ocorreram em favor do chamado “voto impresso auditável”. A discussão é antiga, mas a pauta vem sendo incentivada pelo presidente Jair Bolsonaro e está em análise na Câmara dos Deputados através de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) apresentada pela deputada Bia Kicis (PSL-DF). Em Montenegro, na manhã desse domingo, 1º, dezenas se reuniram na Praça dos Ferroviários para defender a iniciativa.
“Se nós não tivermos um voto auditável, contado publicamente, como nós vamos saber se aquele pessoa em que eu votei, que tu votou, foi votado? Do jeito como as urnas estão hoje, elas são fraudáveis. Vai qualquer um e digita”, opina o empresário Ademir Penz, tesoureiro do Núcleo Conservador de Montenegro. “É como o presidente diz. Nós queremos um voto democrático, independentemente do partido que está lá.”
“A gente entende que a gente precisa ter essa garantia para as nossas eleições”, adiciona a vereadora Camila Carolina de Oliveira (Republicanos), também presente entre o grupo. “Algumas pessoas me questionam por eu ter sido eleita com as urnas eletrônicas. Eu fui, mas não somos nós, os políticos, que temos que ditar para o povo como deve ser. É o povo que dita; e a grande maioria da população brasileira quer e exige o voto impresso auditável”, avalia a parlamentar.
Em linhas gerais, a PEC prevê que cada urna eletrônica fique conectada a uma impressora. Ao confirmar seu voto, o eleitor verá sair, impresso, um papelzinho com os candidatos em quem votou. Ele não terá, porém, como manusear essa cédula impressa, que também não terá seus dados para que o sigilo do voto não seja quebrado. Automaticamente, o papel cai em uma urna física e, se os resultados forem questionados, essas urnas são abertas para uma recontagem manual.
“O Brasil é um dos poucos países que usa a urna eletrônica sem ter o impresso. Então, porque não modernizar?”, questiona Camila. “Nós só queremos poder fazer a conferência com o boletim de urna e com o que está ali dentro.” O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), porém, já se posicionou contrário à modalidade por considerá-la desnecessária ao sistema brasileiro e por entender que o uso do papel impresso acabará dando, ao contrário do objetivo, mais margem para fraudes.
“O voto impresso vai potencializar o discurso de fraude. E vão pedir, como já se pediu aqui, a contagem pública de 150 milhões de votos. E contagem pública só pode ser manual. Então, nós vamos entrar num túnel do tempo e voltar à época das fraudes, em que as pessoas comiam votos, as urnas desapareciam, apareciam votos novos. Nós vamos produzir um resultado muito ruim”, avaliou recentemente o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso.
Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo, apenas Brasil, Bangladesh e Butão adotam hoje, em larga escala, a votação por urna eletrônica sem o registro em papel. A maioria dos demais que usam do meio eletrônico já adotam, em alguma medida, equipamentos que imprimem o comprovante. O modelo proposto pela PEC é parecido com o da Índia, cuja implantação ocorreu entre 2011 e 2019; e também ao de alguns estados norte-americanos.
Novo sistema também pode abrir espaço para fraudes, avalia chefe do cartório
Em entrevista à Rádio Ibiá Web na sexta-feira, Diego Bonato Coitinho, chefe do cartório da 31ª Zona Eleitoral, da qual faz parte Montenegro, comentou a proposta. “Nós, desde 1996, utilizamos urnas eletrônicas no Brasil. Em 96 foram poucas cidades, depois foi ampliado e, desde 2000, a urna eletrônica é utilizada em todos os municípios brasileiros. Em todos esses mais de vinte anos, nunca houve nenhuma denúncia comprovada de fraude em urna eletrônica”, explica.
Coitinho reconhece que o projeto do “voto impresso auditável” tem potencial de ser mais um mecanismo de verificação da urna. “Contudo, já existem hoje diversas ferramentas de auditoria que podem ser feitas antes do dia da eleição e, inclusive, após. A urna brasileira já é desenvolvida para ser auditada da forma como ela é”, pondera.
O especialista salienta que a instituição do voto impresso como forma extra de auditoria pode acabar trazendo algumas fragilidades ao exercício do voto que precisarão ser bem operacionalizadas. Dentre elas, dificuldade de utilização por deficientes visuais que contam com a urna eletrônica em braile e dispositivo que lê, através de um fone de ouvido, o que está na tela. Também, possíveis problemas com as impressoras, como os constatados em 2002, quando a modalidade chegou a ser testada. “Cada vez que algum servidor tinha que ir destravar a urna eletrônica e tirar o papel que estava trancado na impressora, ele acabava violando o sigilo do voto do eleitor”, lembra.
Mas talvez a questão mais problemática, ele aponta, seria o momento de recontagem dos “votos auditáveis”. O amontoado de papeizinhos sendo manuseado manualmente poderia abrir margem para erros e fraudes; o que muito acontecia quando o voto era, efetivamente, em cédulas. “Teria essa questão de serem muitos votos para ser contados e, se somente um papel sumir ou aparecer um papel a mais no meio das cédulas impressas, poderia acabar sendo anulada toda aquela sessão eleitoral”, comenta Coitinho. Numa eleição para vereador, ele exemplifica, uma única sessão anulada poderia acabar mudando o resultado da eleição.
TEMPO HÁBIL
No caminho para que valha a nova modalidade, será preciso regulamentar esses detalhes; regrando as possibilidades de pedido de recontagem e em qual momento ela ocorrerá – se só por demanda ou no fechamento de cada sessão. A adequação também passa por adquirir e adequar equipamentos de impressão com sistemas seguros contra fraudes e invasão de hackers; bem como as próprias cédulas impressas, que precisam de algum mecanismo de controle e segurança. Para o TSE, mesmo que aprovada a PEC na Câmara e no Senado, dificilmente o sistema estará em operação à pleno já em 2022, como defende o presidente Bolsonaro.
“Pra se aplicar nas eleições do ano que vem, a lei precisa ser aprovada um ano antes da eleição. Daí teremos que ver o que a PEC trará de previsão legal; se será o voto impresso em 100% das urnas ou em parte delas, por amostragem. Depende do que for aprovado e, depois, entra a questão da implantação”, comenta o chefe do cartório local. “Se for em todas as urnas eletrônicas, são mais de 400 mil em todo o Brasil. Então, é pouco provável que, em menos de um ano, se faça o processo licitatório para a entrega dessas urnas, que não são urnas prontas que há no comércio. Terá que ser uma solução de engenharia nova, porque ela deve ter um local onde vai largar essa cédula que fique fora do alcance do eleitor. São por questões técnicas e legais, pela licitação em si, que é pouco provável que, em menos de um ano, isso já fique pronto para a próxima eleição.”
O que garante a segurança das eleições, hoje?
O TSE avalia que são remotas as possibilidades de as urnas eletrônicas serem invadidas por hackers no formato atual. Isso, dado o fato de que elas não possuem mecanismos de conexão externa como via internet ou Bluetooth. Mesmo se, passando por todas as barreiras de segurança, houver alguma violação de software, ela interferirá só na urna específica, visto que os equipamentos não são interligados. O Tribunal adiciona, ainda, que as urnas são programadas para bloquear qualquer tentativa de ataque; e que a inserção de programas não oficiais, como um vírus, é dificultada pelo uso de assinaturas digitais que verificam a integridade do software. A urna só liga se reconhecer a assinatura correta.
Esse sistema, que vai dentro das urnas, também é auditado. Periodicamente, por um teste de integridade feito por especialistas em segurança da informação. E, seis meses antes da eleição, quando a justiça eleitoral também permite que os partidos políticos e especialistas indicados vistoriem o código fonte do programa. É realizado, ali, o Teste Público de Segurança (TPS) para verificar a segurança das urnas que, não disponíveis no mercado, foram desenvolvidas para atender especificamente a realidade nacional. Só duas semanas antes das eleições que os equipamentos recebem os softwares. Após, as urnas são lacradas.
Dentre os argumentos que defendem a segurança do sistema ainda está o processo de ligação das urnas que, como medida de segurança, imprimem a “zerésima”, um relatório inicial que indica que a máquina não tinha votos registrados antes do acionamento.
Ao fim da votação, os votos de cada eleitor são gravados em um arquivo chamado Registro Digital do Voto (RDV), que tem estrutura similar a uma tabela. O RDV posiciona os votos de forma aleatória para garantir o sigilo do eleitor. É a partir dele que são impressos os boletins de urna, relatórios com a apuração de cada sessão eleitoral que apontam quantos votos cada candidato ganhou por ali. É justamente o boletim uma das principais justificativas do TSE para refutar o novo “voto impresso auditável”. Isso por, em tese, ele já permitir uma “recontagem” antes de a urna passar por qualquer sistema externo.
Essas boletins são públicos para consulta com o fechamento de cada sessão. De praxe, uma via do boletim fica colada na porta da sala, outro é dado a representantes dos partidos; e outros três são encaminhados ao cartório. A mesma informação desse papel impresso também é inserida em uma mídia digital criptografada e digitalmente assinada. A transmissão dos dados, então, é feita ao TSE via satélite por meio de uma rede privada; e os resultados de cada sessão eleitoral ficam disponíveis para consulta. Eles podem, portanto, ser confrontados. “Mesmo na improvável hipótese de acesso indevido às redes da Justiça Eleitoral e violação de todas as diversas barreiras de segurança, não seria possível alterar os resultados da eleição impressos pela urna eletrônica”, conclui o TSE.
Durante as eleições, ainda ocorrem testes de integridade da votação com as chamadas “auditorias de funcionamento das urnas eletrônicas”, ou “votação paralela”, que ocorrem em algumas sessões selecionadas. O procedimento é filmado e conta com membros do TSE, da OAB, do Ministério Público e representantes de partidos políticos, além de uma empresa terceirizada.
Não é a primeira vez que se discute a impressão dos votos
Houve três tentativas anteriores de instituir, no Brasil, algum tipo de voto impresso como o proposto atualmente. Em 2002, uma primeira lei foi aprovada, mas o teste feito apenas em algumas das sessões mostrou dificuldades de operacionalização e muitos defeitos em equipamentos. O dispositivo, então, foi revogado. Em 2009, uma outra tentativa foi declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) pois se entendeu que o formato proposto na época colocava em risco a garantia constitucional do sigilo do voto; e violava os princípios de economia e eficiência na gestão do recurso público. A terceira tentativa é de 2015, com uma “minireforma” eleitoral que acabou, também, considerada inconstitucional pelo STF. Hoje, porém, no formato de Proposta de Emenda à Constituição, o texto altera diretamente a Constituição Federal e, assim, não tende a ser barrado pelo supremo. Acaba, no entanto, tendo uma tramitação mais demorada.