Eles vieram de reservas de Carazinho e Redentora, estão acampados no bairro Santo Antônio e vendem seu artesanato
Grandes, pequenos, de formatos diversos, os cestos e aves feitos a partir de trançados com cipó chamam atenção às margens da ERS-287, no bairro Santo Antônio, em Montenegro. Logo abaixo, as barracas montadas com lona de plástico preto formam o acampamento dos índios Kaingang. Alguns chegaram há uma ou duas semanas, mas, para outros, a estada no município já dura 40 dias. O grupo veio de reservas de Carazinho e Redentora, na região norte do Rio Grande do Sul.
A estrutura no acampamento é precária, com poucos utensílios para preparar a refeição em fogo de chão. A iluminação é com vela e, para água, os índios recorrem a uma torneira cedida por um morador próximo, compartilhando a despesa com o abastecimento. “Nós pagamos metade da conta (de água)”, explica Eliseu Claudino, 42 anos, que representa os índios no acampamento.
A sombra das árvores ameniza um pouco os transtornos gerados pela alta temperatura. É nessa sombra que as crianças brincam sob o olhar de alguns adultos que revezam o cuidado com o acampamento e a venda de artesanato. “Mas à noite, para dormir (dentro das barracas), é muito quente”, observa Eliseu. Mesmo assim, afirma que o acampamento é bom, tranquilo e que foram bem recebidos pelos montenegrinos.
Satisfeito com o período que passa por Montenegro, ele afirma que veio de uma reserva em Carazinho. Elizeu observa que, em sua região, já não há mais mercado para o artesanato, razão da vinda para o município. “Lá já vendemos, não tem mais venda, nem serviço”, afirma. Por isso, aproveitam o verão e as férias escolares para seguir em direção a outras cidades e comercializar as peças que produzem.
Alegando falta de trabalho em Carazinho, Elizeu cogita a possibilidade de permanecer em Montenegro, mas observa que isso dependeria de encontrar moradia, pois a vida no acampamento é provisória. Conforme ele, na reserva de onde vem, há 28 famílias. “Tem escola para os pequenos dentro da reserva”, acrescenta, observando que as crianças menores falam só a língua nativa Kaingang (também chamada Jê). Elizeu conta que essa linguagem é estimulada na escola da reserva, uma forma de manter as origens culturais do povo indígena, que vêm se perdendo ao longo das décadas.
Migração pelo Rio Grande do Sul para venda de artesanato
Junto com o neto Wesley, oito anos, Júlia Ferreira, 45 anos, segue carregada com peças de artesanato para expor na calçada da Rua Ramiro Barcelos, no Centro de Montenegro. “É perto de Três Passos”, acrescenta ela, ao dizer que veio de Redentora, há cerca de 15 dias.
Júlia também está no acampamento indígena, às margens da ERS-287, no bairro Santo Antônio. É a primeira vez que vem para Montenegro, mas já passou por outros municípios, como Candelária, Sobradinho e Arroio do Meio. Os Kaingang têm aldeias fixadas em vários estados do país e em algumas cidades gaúchas, mas são nômades. Eles costumam migrar no período de férias escolares em busca de novos mercados para o seu artesanato. “Cada vez a gente vai pra uma cidade”, resume.
A índia planeja retornar para Redentora nos próximos dias. O marido e um dos filhos ficaram na reserva cuidando da plantação de aipim, feijão, milho e outros cultivos. “A gente tem também um terneiro e uma vaca”, acrescenta, explicando que toda a produção é para consumo na aldeia. Júlia tem nove filhos, todos morando em reservas indígenas. “O mais velho é cacique em Santa Maria”, afirma, com os olhos brilhando de orgulho.
O costume de produzir artesanato faz parte da cultura do povo e é passado entre as gerações. Júlia conta que as filhas também sabem trançar o cipó na produção de peças artesanais, entre as quais cestos, aves e ninhos de passarinho. E os netos e netas? “Esse já sabe vender”, responde ela sorrindo, ao olhar para Wesley.
O garoto afirma que irá para o quarto ano do Ensino Fundamental e a proximidade da volta às aulas é uma das razões para que Júlia e sua família planejem o retorno para casa, em Redentora. “Mas aqui (em Montenegro) é muito bom, a gente não vende muito, mas as pessoas nos tratam bem”, resume. Ela observa que, aos mesmo tempo em que algumas famílias de índios retornam para a reserva, outras devem chegar no acampamento, no bairro Santo Antônio.
Casal fica para cuidar do acampamento e do pequeno Ícaro
O casal Ádria da Silva, 19 anos, e Rafael Soares, 18 anos, aproveita a sombra da tenda improvisadacom uma lona apoiada em taquaras. Juntamente com o filho, Ícaro Gustavo, de três meses, eles descansam e, ao mesmo tempo, reparam os poucos pertences dos índios que estão nas barracas.
Ádria e Rafael também são kaingangs e fazem parte do grupo de índios acampados nas margens da RSC-287. A barraca do casal, bem como outras duas, estão em um espaço com menos árvores e, portanto, com maior incidência do sol. A sensação de calor e abafamento é grande nas barracas.
Oriundo da reserva de Carazinho, Rafael está há poucos dias em Montenegro e, até então, não conhecia o município. Como os demais, eles também utilizam fogo de chão para cozinhar, buscam água de um vizinho e amenizam a escuridão da noite com velas. Acostumado a viver com pouco, ele não estranha a vida com poucos recursos e sem conforto no acampamento.
A possibilidade de vender artesanato trouxe o casal e a família para solo montenegrino. Rafael, no entanto, está disposto a trabalhar em outros serviços, entre os quais o de capina, como fez no primeiro dia em que chegou ao acampamento.
Saiba mais
O povo Kaingang integra a diversidade cultural do país. Eles formam um dos mais numerosos povos indígenas do Brasil. Conforme o Conselho de Missão entre Povos Indígenas (Comin), os Kaingangs estão em São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No solo gaúcho, estão distribuídos entre 14 Terras Indígenas (TI’s) e diversos acampamentos existentes em todo o estado. A população estimada é de 22.200 pessoas. A sobrevivência depende principalmente da produção agrícola, através de espaços administrados pela Fundação Nacional do Índio, e venda de artesanato.