Testemunhas da Segunda Guerra Mundial e da perseguição aos judeus contaram suas histórias em painel
O olhar sereno e os modos com que se porta Curtis Stanton fazem lembrar aqueles avôs que nasceram, cresceram e envelheceram levando uma vida tranquila e de muito trabalho e que agora passam o tempo relembrando o saudoso passado e curtindo os netos. Porém, as memórias de Curtis não são as mais agradáveis. Natural de Hamburgo, no norte da Alemanha, ele leva também na pele a inscrição B8097 que sempre o lembrará que é um sobrevivente do Holocausto.
Curtis tem hoje 87 anos e viveu, a partir de 1933, ano em que Adolf Hitler e o partido nazista assumiram o poder na Alemanha, os piores horrores que a espécie humana pode presenciar. Tudo isto por ser judeu. “Nossa família era tipicamente alemã, apenas a religião era diferente”, explica o sobrevivente que cavou a história da sua família em terras alemãs até o ano de 1600. Com a fala ainda carregada pelo sotaque, apesar de viver no Brasil desde o final da década de 1950, o idoso lembra que o primeiro golpe sentido pela sua família foi o seu pai ser demitido do cargo de gerente da loja na qual trabalhava, ainda em 1933.
Dois anos depois, Curtis, então com seis anos, passou a frequentar a escola pública. “A vida era normal, mas mudou em 1936, com a escalada do antissemitismo. Tive brigas diárias na escola e fui expulso dela”, lembra. O alemão também recorda que não ficava sem revidar as agressões. “Eu tinha um problema no cotovelo e ele ficava enfaixado junto com ferros. Isso era a minha arma”, revela.
Em 1938, o sobrevivente viu seu irmão e sua irmã mais velhos serem enviados para a casa de parentes na Inglaterra. Como tinha apenas nove anos na época, seus pais acharam que ele era muito novo para ser mandado ao exterior. Assim, Curtis ficou na Alemanha até outubro de 1941, quando sua família recebeu um comunicado de que deveria se apresentar na estação férrea central apenas com uma mala por pessoa.
Lá, junto com centenas de outros judeus, Curtis e seus pais foram colocados no vagão de carga de um trem que partiu em direção ao gueto de Lodz, na Polônia. A viagem durou cerca de dois dias, durante os quais os aproximadamente 70 ocupantes do vagão antes usado para o transporte de animais não tiveram nada para comer e beber ou espaço para fazer suas necessidades.
No gueto, Curtis foi colocado para trabalhar em fábricas que produziam apetrechos para o exército nazista. Na área cercada por militares e também pela polícia polonesa, o alemão e seus pais dividiram um apartamento de dois quartos com outras 16 pessoas. Foi lá que seu pai, um ex-combatente da Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, morreu em 1942, por falta de cuidados médicos.
Foi em Lodz que o sobrevivente também viu a sua vida em grande risco. Ao retornar do serviço numa noite, ele e um grupo de trabalhadores foram cercados por soldados e levados para um hospital. A informação era de que eles seriam enviados para outro lugar e, na época, já corria pelo gueto a história dos campos de concentração. Pressentindo o perigo, o jovem Curtis conseguiu fugir do hospital e retornar para o apartamento em que sua família viva. Porém, em 1943, foi impossível escapar e ele e sua mãe foram enviados para Auschwitz.
Passagem por três campos de concentração até a liberdade
Curtis lembra que, ao descer do vagão de trem, na plataforma de Auschwitz, um oficial da Schutzstaffel – conhecida por SS, a temida organização paramilitar ligada ao partido nazista – separava os recém chegados em duas filas: a da direita e a da esquerda. “Minha mãe foi para a da esquerda e o oficial perguntou que idade eu tinha. Até hoje não sei porque disse 16, mas eu tinha 14”, conta Curtis. Essa mentira o fez ser colocado na fila da direita, o que acabou salvando sua vida. A mãe foi levada para uma câmara de gás e ele colocado para classificar as roupas dos mortos nas unidades de extermínio.
Atrás dos portões conhecidos por carregar o lema “Arbeit macht frei”, ou seja, “O trabalho liberta”, Curtis conta que a principal dificuldade era conseguir comida. “Reviramos até lixo das cozinhas para tentar comer”, afirma. Porém, o que mais chocou o judeu foi o que ocorria com as pessoas que tentavam escapar. Pegos durante a fuga, os fugitivos eram comumente espancados por seus captores e depois levados de volta para o centro de concentração, onde eram enforcados em público.
O sobrevivente ficou em Auschwitz, onde aproximadamente 1,3 milhão de pessoas foram assassinadas, até o inverno de 1944, quando enfrentou uma marcha da morte. Segundo recorda Curtis, foram três dias de marcha pela floresta, sendo que muitos dos prisioneiros sequer possuíam roupas. Os que não aguentavam mais caminhar, eram fuzilados pelas tropas alemãs e deixados à margem do caminho. Finda a marcha, o sobrevivente foi colocado num vagão de carga e levado até o campo de concentração de Mauthausen, na Áustria.
Curtis passou apenas alguns meses no complexo austríaco, sendo enviado para o campo de Sachshausen, nas proximidades de Berlim. Lá, um médico norueguês que também era prisioneiro dos nazistas salvou a sua vida ao cuidar dele durante uma doença. Já em 1945, com o cerco dos Aliados se fechando, os sobreviventes de Sachshausen foram colocados em caminhões. Após três dias de viagens e ataques de aviões Aliados ao comboio, os prisioneiros acordaram para descobrir que as tropas alemãs haviam abandonados os veículos durante a madrugada. Eles estavam finalmente livres.
Reencontro com o irmão que virou combatente
Sozinhos, Curtis e os demais desceram dos veículos e seguiram a estrada até se encontrarem com uma patrulha de soldados ingleses. “Foi a coisa mais estranha da vida. Ninguém conseguiu falar, mas de alguma forma nos entendemos. Eles falavam inglês e no nosso grupo falávamos alemão, polonês e russo”, recorda Curtis. Dali, os sobreviventes foram levados para Lübeck, onde foram colocados sob a responsabilidade de soldados franceses que também haviam sido prisioneiros de guerra. Da cidade alemã, seguiram para Lille, na França, e de lá para Paris.
Em Paris, com a ajuda de uma entidade que ajudava judeus sobreviventes, Curtis reencontrou o seu irmão, que estava lutando na guerra ao lado dos Aliados, após seis anos. Junto com os sobreviventes, ele foi enviado para um moinho no interior da França onde tentaram civilizar novamente os que passaram pelos horrores da guerra. Meses depois, Curtis foi para a Inglaterra, onde viveu até 1958, quando se mudou para o Brasil.
Doutrinado para esquecer a família e o nome
Bernard Kats, 80 anos, tinha três anos quando as tropas alemãs invadiram a Holanda. De família judia, ele viu seu pai ser enviado para um campo de concentração após dois oficiais da SS serem assassinados na cidade na qual vivia. “Os nazistas invadiram o apartamento e levaram o pai para um campo de concentração na Polônia. Depois ele foi mandado para a Áustria”, conta. Quinze dias depois, a mãe do sobrevivente recebeu uma carta avisando que seu marido havia falecido. “Ainda vejo minha mãe na porta de casa com a carta na mão. De um dia para o outro, seu cabelo virou grisalho”, sublinha.
Para proteger sua família, a mãe de Bernard aceitou ser separada do filho e da filha, que foram levados por um grupo que ajudava judeus para uma cidade do interior, onde moravam numa fazenda. “Fomos doutrinados para dizer que nossos pais morreram em Roterdã, que meu nome não era meu nome, que meu sobrenome não era meu”, lembra Bernard. Ele e a irmã foram ensinados até a fazer uma oração evangélica para não mais rezar em hebraico.
Apesar de passar por dias tensos e até mesmo ter que ficar uma semana escondido num sótão, Bernard diz que o momento mais traumático da sua vida foi quando sua mãe apareceu na residência onde ele e a irmã viviam. Ela e uma amiga pedalaram mais de 150 quilômetros para os encontrar. Para o sobrevivente, encontrar a mãe foi um choque por ele ter sido ensinado desde pequeno que seus pais haviam morrido.
Outra memória ainda viva para Bernard é a de tanques aliados chegando na cidade. “Foi em 16 de abril de 1945. Antes havíamos nos escondido por três dias na floresta”, lembra. Ele também recorda que, semanas após o fim da guerra, mulheres do seu bairro que haviam namorado soldados alemães tiveram os cabelos raspados para denunciar que elas haviam ajudado os nazistas. Oito anos depois do final do conflito, Bernard se mudou para o Uruguai, onde viveu até 1970, quando veio para o Brasil.
Na Holanda, Johannes teve um pai heróico
Natural de uma cidadezinha holandesa próxima da fronteira com a Alemanha, que tinha importância por dar acesso ao Vale do Ruhr por barco, Johannes Melis, 79 anos, era muito pequeno quando a Segunda Guerra Mundial arrasou a Europa, mas ele guarda na lembrança as atitudes de seu pai, que salvou famílias de judeus e também a sua própria. Por ser responsável pelo sistema de eclusas do rio, os nazistas lhe deram passe livre quando a Holanda foi invadida e mantiveram sua família longe de qualquer dano.
Antes mesmo de as tropas alemãs invadirem os Países Baixos, o pai de Johannes já havia feito esconderijos na sua casa, temendo uma possível invasão da qual muitos duvidavam. “Todo mundo chamava ele de louco e, passado um ano, a Alemanha invadiu a Holanda”, destaca o sobrevivente, que na época tinha apenas dois anos. Fora dos olhares das tropas alemãs, a família de católicos conseguiu resgatar dois pilotos americanos, um canadense e um inglês que caíram perto de sua residência. Após passarem um tempo escondidos, foram levados embora em segurança.
Assim que teve início a perseguição dos nazistas aos judeus na Holanda, o pai de Johannes se deslocou para a cidade com a sua motocicleta para ajudar as famílias semitas que ali viviam. “Ele buscou uma família com dois filhos e também um casal. Trouxe um a um com a motocicleta e os homens precisavam se vestir de mulher para não chamar a atenção”, conta o sobrevivente.
Ajudando os inimigos dos alemães, o pai de Johannes participou de uma ação que terminou com um barco alemão afundado. Porém, as tropas de Hitler descobriram sua participação. “Os alemães vinham até a nossa casa e eu e minha irmã dizíamos que o papai estava viajando e que a mamãe estava doente”, recorda. Porém, isso não impediu que a residência fosse revirada pelos nazistas diversas vezes.
Vendo o cerco se fechar e sentindo a aproximação das forças Aliadas, a família Melis e demais sobreviventes se refugiaram em um bunker abandonado na região. Mesmo quando uma enchente invadiu o local, eles deram um jeito de se manter lá. Foi só quando a comida estocada acabou que o pai de Johannes saiu para procurar alimentos. Acabou sendo encontrado por uma patrulha nazista que foi até o esconderijo e informou que todos deveriam se apresentar às 6h do dia seguinte para serem colocados num barco que iria para um centro de concentração.
Sem deixar se abalar, o patriarca da família Melis saiu naquela noite para mais uma tentativa de achar comida. Fez um novo trajeto e novamente foi parado por militares. Só que desta vez americanos. Ao ouvir a história, a patrulha avançada entrou em contato com o comando e recebeu a ordem de retirar as famílias que estavam no bunker. “Não esqueço que fui carregado no ombro por um soldado que caminhava com água até o pescoço”, destaca Johannes.
Do sul da Holanda, a família Melis foi enviada para a fronteira com a Bélgica, onde ficou até o final da guerra. “Foi só a partir dali que passei a viver, a sair de casa e a conhecer familiares”, revela Johannes. Com sete anos quando foi decretado o fim do conflito mundial, o sobrevivente lembra que viu os adultos se abraçando e dando gritos e pulos de alegria com a notícia. Com a paz, a família retornou para sua casa. Porém, cinco anos depois, os Melis embarcaram para recomeçar a vida no Brasil.
Painel percorre escolas do Estado
As histórias de Curtis, Johannes e Bernard foram contadas por eles na manhã de ontem para alunos do 5º ao 9º Ano e pais da escola Capital do Saber, de Feliz. Os sobreviventes fazem parte do painel Compromisso Moral e Lições de Solidariedade, organizado pelo Instituto Cultural Judaico Marc Chagall e pela B’nai B’rith. Mais de 50 palestras foram realizadas por eles em todo o Estado.