Cultura doadora. Gesto solidário das famílias se torna um marco, porque não ocorria desde 2014 em Montenegro
O Hospital Montenegro (HM) 100% SUS teve um fevereiro de 2018 para entrar na história. Desde 2014 a casa de saúde não tinha registrado nenhum caso de captação de órgãos (situação em que, após confirmada a morte encefálica, a família tem a opção de autorizar ou não a doação), apesar de terem ocorrido situações com potenciais doadores. Entre 2015 e 2017 foram 12 negativas familiares. Foi aí que nasceu uma campanha “Cultura Doadora”, em parceria com diversas instituições, entre elas o Jornal Ibiá, com o objetivo de transformar histórias tristes em relatos de solidariedade.
Na quarta-feira, 14 de fevereiro, após um trágico acidente de moto na localidade de Vendinha, o jovem Felipe Santos Silveira, de 17 anos, foi encaminhado ao HM em estado grave. Sua morte cerebral foi confirmada às 13h do dia seguinte. A família manifestou interesse antes mesmo da equipe do HM ir conversar a respeito da possibilidade de doação. Sete pessoas foram beneficiadas com o transplante de dois pulmões, coração, fígado – que foi repartido em dois – e os dois rins.
Já na madrugada da quinta-feira da semana seguinte, Lia Hack, 66 anos, por conta de um acidente vascular cerebral, teve a morte encefálica confirmada. Ao serem contatados pela equipe do HM, os filhos entraram em consenso pela doação, considerando o desejo dela de sempre fazer o bem em vida e que, portanto, a doação seria a sua vontade. Foram retirados para transplante o fígado e os dois rins.
Passados 10 dias do acidente que levou a vida de seu filho, Fátima Kuhn dos Santos, 47 anos, recebeu a reportagem do Ibiá. Ladeada pelos seus outros dois filhos — Eduarda e Fernando —, ela conta que Felipe há menos de uma semana havia realizado o sonho de comprar a própria moto, mas pilotava há bastante tempo. “Um guri bom. Tinha começado a trabalhar e juntou o dinheiro para comprar”, conta. O veículo foi adquirido de um amigo da família, Patrik Ohweiler, 24 anos, que agora, após o desfecho trágico, recebe o conforto de Fátima. “Ninguém tem culpa. Ele queria muito a moto”, destaca Fátima.
A estrada sempre esteve na história da família. O pai de Felipe, João Eduardo Silveira, é caminhoneiro, assim como o outro filho, Fernando. E essa era a profissão que Felipe desejava. “Ele participava dos grupos de caminhoneiros. E quando sabia que alguém ia passar, pegava a máquina e corria pra estrada pra tirar foto. Eu brigava com ele, com medo dele se acidentar, mas não adiantava”, recorda a mãe. “Ele fez em 17 anos o que muitos não fazem até a velhice. Fez tudo o que queria e precisava”, diz o Fernando, que mostra o troféu que ganhou junto de Felipe, num torneio de laço-irmão, outra paixão do adolescente.
O acidente foi a poucos metros de casa, local por onde a família passa diariamente. Tanto que Fátima logo foi informada e chegou ao local antes mesmo do socorro médico. “Ali, na hora, eu vi que não tinha muito o que fazer”, relata. Ela avisou ao ex-marido, que mora em Porto Garibaldi, e acompanhou todo o socorro, mesmo já sentindo no coração qual seria o desfecho. “Cheguei ao hospital e me tranquei num banheiro. Pedi pra Deus que, se fosse pra me devolver ele, que fosse bem, não pra vegetar sobre uma cama. Eu não conseguiria ver meu filho assim. E ele não merecia me ver sofrer dessa forma”, diz Fátima.
“Se existisse transplante de cérebro, eu lutaria para salvar meu filho”
Em geral, quando ocorrem casos de morte encefálica, profissionais da instituição de saúde, já tendo confirmado que não é possível salvar o paciente, mas que os órgãos podem ser preservados para doação, contatam a família. No caso de Felipe, não foi assim. Entendendo a gravidade do que se passava, Fátima tomou a iniciativa. “Logo que ele chegou ao hospital o médico me disse que o quadro não era bom, que havia só um fiozinho de esperança. Então depois eu perguntei se, caso aquele fiozinho se fosse, se ele poderia ser doador de órgãos. E a médica me disse ‘calma mãe, a gente vai chegar nessa parte’”, recorda.
A médica citada por Fátima é a nefrologista Tatiana Michelon, diretora clínica no HM, que confirma ser essa a abordagem diante de um momento de dor familiar. “Naquele instante ainda não estava confirmada a morte encefálica. Então não tínhamos um doador e sim um paciente. Enquanto havia esperança na vida dele, pensamos apenas nele”, enfatiza Tatiana. Mas logo após a esperança findou e a família manteve a decisão manifestada anteriormente.
“Se eu tivesse como salvá-lo, eu tentaria. Se existisse transplante de cérebro, eu teria lutado por um para salvar meu filho. Mas não tem. Eu não tinha como fazer nada por ele. Então por que não doar?”, explica Fátima, entre lágrimas. “Não é fácil. Dizer sim dói. Você pensa se ele não pode viver mais alguns dias, pelos aparelhos. Mas sei que não havia o que fazer. Foram feitos todos os testes possíveis”, complementa. A irmã de Felipe resume o ato de uma forma singela. “No céu não precisa de órgão, mas na terra, sim”, diz Eduarda.
Talvez por ser tão jovem, Felipe nunca havia manifestado claramente a vontade de doar os órgãos. Mas a importância desse gesto sempre foi clara entre os familiares. O patrão do pai de Felipe recebeu um coração há muitos anos. Eles tiveram a chance de acompanhar todo o processo, desde o sofrimento da doença até a cura pelo transplante. “Felipe nunca disse ‘eu quero doar’, mas ele sempre achou um gesto bonito e, conhecendo ele como a gente conhecia, sei que ficou feliz. Onde ele estiver, sei que ele está bem”, resume a mãe, que diz ter vontade de conhecer quem agora leva o coração de seu filho no peito. Caso isso venha ocorrer será porque as famílias se procuraram por vias alternativas, já que os hospitais não passam informações nem incentivam essa prática.
* A família de Lia Hack foi contatada, mas preferiu não se manifestar nesse momento.