VÍTIMAS de agressões abrem o coração: “O que ele dizia era como se me desse uma facada”
“Já me criei sofrendo”. A frase da mulher a qual iremos identificar apenas como Maria, de 51 anos, diz muito sobre as situações de violência doméstica que enfrentou desde a infância – na casa dos pais -, e que só piorou após casar-se. A história dela se entrelaça com a da que chamaremos apenas de Penha, de 37 anos, que passou por dois relacionamentos abusivos, com agressões físicas e verbais efetuadas pelos companheiros (em dois matrimônios). O que elas também têm em comum é a satisfação e a alegria de contar que se libertaram da vida de tristeza no momento em que decidiram se separar, rompendo de vez o ciclo da violência.
Os relatos de Maria e de Penha (nomes fictícios dados para preservar a identidade das vítimas, moradoras de Montenegro) têm como objetivo alertar outras tantas mulheres, que são torturadas física e psicologicamente por homens, com os quais um dia trocaram juras de amor. Ambas mostram que é possível se libertar e ter uma vida melhor, cheia de realizações no presente e esperanças no futuro.
O sofrimento de Maria começou quando era apenas uma criança. Já na infância e também na adolescência sofria com as agressões do pai. Muitas vezes ela e os nove irmãos fugiram para o mato para escapar das ameaças do pai, que corria com faca em mãos atrás deles. A mãe dela não acreditava que fosse conseguir criar seus 10 filhos sem o marido, e por isso nunca tentou se separar do homem.
Aos 15 anos de idade, Maria conheceu um rapaz com quem, mesmo contra a vontade do pai, começou a namorar. Para se ver livre das brigas em família, ela fugiu para morar com o jovem. “Fugi para me livrar daquele inferno.” O que ela não imaginava é que aquele era o começo de um novo pesadelo.
Desde o começo da relação o companheiro dava sinais de como seria a vida conjugal. “Ele saía e me deixava sozinha em casa, me batia, tinha várias amantes…”, conta Maria. Quando conseguiu trabalho, na mesma empresa em que o marido estava empregado, começou a passar por novas humilhações. “No ônibus que nos levava ao trabalho, ele não sentava comigo. Sentava no fundo com outras mulheres e ficava debochando, rindo de mim.”
Os sinais também estiveram presentes no começou do primeiro relacionamento de Penha, nossa segunda “sobrevivente” desta história. Quando casou-se, aos 16 anos, para ela, as demonstrações de ciúmes do marido eram consideradas normais. “Ele não deixava eu me arrumar, não queria que usasse roupa curta, nem que fizesse às unhas. Pra mim era normal, até que um dia ele me deu o primeiro tapa”, lembra Penha. Com o passar do tempo a situação só piorou.
Olho roxo e perseguição
Ser agredida pelo marido foi, por muito tempo, rotina na vida de Maria. Por mais de uma vez ela teve de baixar a cabeça diante da vergonha e ir trabalhar com marcas roxas em seus olhos.
Penha, por sua vez, se esforçava para convencer o marido de que estudar e trabalhar eram coisas normais na vida de uma adolescente. “Ele tinha ciúmes quando as minhas colegas falavam comigo. Eu não podia dar meu número de celular pra ninguém, só ele tinha o número”, conta.
A perseguição era tão grande a ponto do marido faltar trabalho para ficar em casa “tomando conta” da mulher. Depois de um tempo, Penha conseguiu “alforria” para trabalhar, o que não mudou em nada o comportamento do companheiro. “Ele ficava na frente do meu emprego para ver com quem eu ia sair. Implorava para que eu não trabalhasse. Saí de vários empregos achando que as coisas iam melhorar no nosso relacionamento, só que não foi assim.”
Maternidade não serviu como tábua de salvação
Depois de anos enfrentando a indiferença e as agressões do companheiro, Maria achou que engravidar traria alívio ao seu sofrimento. “Queria ter um filho para ter uma companhia”, diz a mulher. Mais uma vez, estava enganada.
Com a morte de sua mãe, Maria passou a ter de cuidar de seu filho, ainda bebê, e das irmãs menores, o que para o marido foi novo motivo para brigas. Maria, assim como a mãe dela, achava que não conseguiria manter as crianças sem a ajuda financeira do marido, então suportava as agressões.
Maria lembra que, já crescidinho, o filho se escondia embaixo da cama para escapar das brigas e ameaças do pai. A sensação de impotência e medo aumentavam a medida que ocorriam novas agressões.
Na vida de Penha, o primeiro casamento lhe deu quatro filhos. Na segunda união vieram outros dois, nenhum deles conseguiu travar o comportamento agressivo de seus genitores. Mas, tanto no caso de Maria como no de Penha, foram os filhos que lhes deram forças para concretizar a separação.
Abusos sexual e psicológico
Para Maria, uma das situações mais tristes ocorreu ao suspeitar que o marido teria tentado estuprar uma de suas irmãs, de apenas 12 anos na época. “Uma vizinha conseguiu socorrer ela. Ele negou, disse que tinha dado uns tapas nela por que não queria levantar para arrumar a casa e cuidar das crianças”, conta Maria. A vítima não esclareceu para a irmã o que realmente havia acontecido. O homem chegou a dizer que iria embora de casa se a companheira o denunciasse à polícia. Sem a versão da garota, a vida seguiu e as agressões também.
Somente depois de 30 anos, ao visitar a irmã, Maria teve a confirmação sobre a tentativa de abuso sexual. “A partir daquele dia, fiquei com mais nojo dele”, conta. Mesmo assim, ela seguiu morando na casa com o marido. Segundo ela, há anos a relação sexual entre eles só acontecia de maneira forçada por ele. “Ele me pegava à força”, explica.
Poucos dias antes da separação, ela negou-se a fazer sexo com o marido. Com raiva pela negativa da mulher, durante a noite Maria recebeu cotoveladas e chegou a ser jogada para fora da cama pelo homem. Mas aquela não foi a primeira vez que Maria foi mal tratada em seu próprio quarto. O homem não a queria na cama, mas queria que estivesse sob sua mira. “Quando eu ia pra sala, dormir no sofá, ele me pegava pelos cabelos e arrastava de volta para o quarto”, detalha. “O que ele dizia era como se me desse uma facada”.
O clima seguiu tenso por alguns dias, até que certa vez ele implicou com o próprio filho. Temendo pela integridade física do rapaz, Maria encontrou forças para denunciar o marido à polícia.
“Com 27 anos, minha aparência era mais abatida que aos 37”
No primeiro casamento, demorou até Penha tomar coragem para se separar. As marcas do sofrimento nesse período ficaram em sua face. “Me separei do meu primeiro marido com 27 anos, minha aparência era mais abatida do que a que tenho hoje”, conta.
Muitas vezes Penha pensou em denunciar o marido por agressão, mas acabava desistindo. “Ele chorava e dizia que estava arrependido, aí, eu não fazia nada, achava que ele ia mudar”, lembra. Porém, certa vez, ele a agrediu de forma tão intensa que o falso arrependimento não bastou para que a mulher tivesse atitude.
“Ele me bateu tanto que não consegui ir no serviço. No outro dia, peguei minha filha e disse que ia no oftalmologista, mas, em vez de ir no médico, fui na delegacia”, relata ela.
Ao saber da ação da mulher, o agressor tentou convencê-la a negar os fatos. “Quando o oficial de Justiça e a polícia chegaram na minha casa, ele disse para eu falar que era um engano, que nunca tinha sido agredida, mas não fiz isso. A polícia entrou e tirou ele de lá.”
Isso não acabou com o sofrimento. Mesmo tendo sido orientado de que não deveria voltar para casa, o homem insistia em reaparecer. Mas graças às medidas preventivas de afastamento, ele acabou deixando Penha em paz.
No começo era mil maravilhas
Penha chegou ao término do primeiro relacionamento psicologicamente esgotada. “Jurei pra mim mesma que nunca mais passaria por isso. Ilusão”, conta.
Depois de três anos separada, Penha resolveu investir em uma nova paixão. O namorado parecia ser uma boa pessoa, que a aceitou com quatro filhos e uma bagagem de vida bastante dolorosa. “Resolvemos morar juntos, os três primeiros anos foram ótimos. Depois ele começou a beber, a gritar, coagia a gente dentro de casa, quebrava coisas… Eu, de novo, sem perceber passei a viver toda aquela situação, até o dia que ele me bateu”, relata.
Penha teve dois filhos no segundo casamento, aumentando para seis o número de dependentes. “As pessoas que estão fora da situação acham fácil dizer que é simples, que é só se separar. Nem sempre é tão simples. A gente tem que querer sair daquela situação. Pode estar todo mundo querendo te ajudar, mas se tu não quer, não vai sair. Tem muita gente que passa por situações assim, mas não vê”, avalia.
Só quando os filhos passaram a ser ameaçados que Penha reagiu e pôs fim a mais um relacionamento mal sucedido. “Ele agredia psicologicamente às crianças, todo mundo tinha medo. Até que ele quis bater em um dos enteados, disse que só tinha duas filhas e não tinha que sustentar filho dos outros. Isso mexeu tanto comigo, que parti pra cima dele. As meninas ficaram apavoradas, saíram correndo e encontraram uma viatura da BM na rua e pediram socorro. Passei por tudo de novo, mas me separei. Hoje vivo em paz”.