Dia Nacional de Doação de Órgãos e Tecidos: doe e salve vidas!

Roberto C. Manfro, médico chefe do Serviço de Transplantes do HCPA. Foto: arquivo pessoal

27 de setembro, próxima terça-feira, é considerado o Dia Nacional de Doação de Órgãos e Tecidos, instituído pela Lei nº 11.584/2007, com o objetivo de promover a conscientização da sociedade sobre a importância da doação que pode, em grande parte dos casos, ser o único gesto capaz de salvar uma ou mais vidas. A campanha se chama Setembro Verde e pretende estimular as pessoas para que conversem com familiares e amigos sobre o assunto. Conforme o Ministério da Saúde, o Brasil tem o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo e o Sistema Único de Saúde (SUS) é responsável pelo financiamento de cerca de 95% dos transplantes no País. Em números absolutos, o Brasil é o segundo maior transplantador do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Pelo SUS, os pacientes recebem assistência integral e gratuita, incluindo exames preparatórios, cirurgia, acompanhamento e medicamentos pós transplante, tudo através da rede pública.

Roberto C. Manfro, médico chefe do Serviço de Transplantes do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), afirma que a doação de órgãos é um ato de bondade, empatia e cidadania. “É o último ato que alguém pode fazer para salvar ou  melhorar a vida de outras pessoas. Existem dezenas de milhares de pessoas à espera de um transplante no nosso país (e milhares no RS) sendo extremamente importante que a sociedade tenha consciência dessa necessidade e assim estejam motivadas para a doação”, diz.

Dados mostram alto índice de recusa familiar
Segundo Manfro, no Brasil, cerca de 50 mil pessoas aguardam pelo transplante de um órgão ou tecido que possa melhorar ou até mesmo salvar sua vida. Vale lembrar que apesar de a discussão acerca do assunto ter aumento significativo, ainda se trata de um tema polêmico e de difícil entendimento, que resulta em um alto índice de recusa familiar, fato que não ocorre apenas no Brasil. Segundo pesquisa conduzida pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a incompreensão da morte encefálica, a falta de preparo da equipe para fazer a comunicação sobre a morte e motivos religiosos são os principais fatores dessa recusa.

Em 2016, o filho de 18 anos de Rejane Schwan, de Campo Bom, o Bruno, foi diagnosticado com morte encefálica após um acidente. Exemplo a ser seguido, Rejane autorizou a doação de órgãos que beneficiou sete pessoas, com oito órgãos doados, sem contar com a pele. “Eu fico muito feliz e grata de ter entendido a missão do Bruno. Saber que estas famílias estão hoje vibrando me faz levantar todos os dias de manhã desde 2016”, relata.

Segundo Rejane, que é mãe solo de outro garoto, doar foi fazer com que estas pessoas permitam que Bruno viva. “Saber que tem pedacinhos do Bruno por aí me traz muita paz e gratidão. Poder dar chance destas pessoas viverem de forma tranquila e saudável não tem preço para uma mãe. Deus tem sido maravilhoso me conduzindo”, ressalta. “Se um dia Deus me permitir e se eles [receptores] desejarem, eu gostaria de dar um abraço em cada um deles. É um sonho”, conta. Ela ainda destaca que é doadora de sangue desde 2002, portanto, a importância das doações sempre esteve inserida na educação dos dois filhos.

Mas, infelizmente, nem todos pensam como Rejane. Segundo a Secretaria de Saúde do RS, até julho deste ano, houveram 422 notificações de morte encefálica no Estado e apenas 117 doadores efetivos. Dentre as causas para a não efetivação da doação nestes casos de morte encefálica está, em primeiro lugar, a negativa familiar (133 casos), seguida de contra indicação médica (80); diagnóstico de morte encefálica não confirmado (48); parada cardiorespiratória (25) e outros (5).

Quanto aos motivos do não consentimento familiar para a doação de órgãos no RS em 2022, nos 133 casos, foi primeiro o fato de a pessoa não ter se declarado doadora em vida (52 casos), seguida da justificativa de demora na entrega do corpo (21); familiar contrário à doação (18); outros (15); integridade do corpo (12); desconhecer a vontade de doar (7); religião (6) e não entendimento da morte encefálica (2). Outra lista importante divulgada é a de espera para transplantes, dos receptores ativos. Até julho deste ano, dado mais recente, a lista contava com 2.712 pessoas, sendo 1.318 a espera de um rim; 980 de córnea; 167 de medula óssea; 161 de fígado; 71 de pulmão; 10 de coração; 4 de rim/pâncreas e 1 de pâncreas.

Dois anos de espera: sem compatibilidade
Elayne Midori Kawaguchi, moradora de Montenegro, é uma das pessoas que aguarda por um transplante de rim. Em 2011, ela foi diagnosticada com uma doença renal crônica que fez seus dois rins entrarem em falência em meio a pandemia. Ela conta que durante um ano fez hemodiálise no HM, três vezes por semana. “Muita dipirona para aguentar a dor de cabeça após as sessões e sensação de fraqueza”, relembra. Durante este período, Elayne entrou na lista de transplantes do HCPA. “Para conseguir entrar efetivamente na lista, são muitos exames sanguíneos, exames de imagem e consultas médica e odontológica”, detalha.

Elayne Midori Kawaguchi mora em Montenegro e aguarda um transplante de rim há dois anos. Foto: arquivo pessoal

Após um ano, Elayne optou peça diálise peritoneal, que se faz em casa. “Devido à pandemia, o número de transplantes diminuiu muito e eu senti na pele a espera, pois não era chamada. Em outubro de 2021 comecei a ser chamada. Mas, poucos sabem, não é uma fila, é por compatibilidade”, explica. “A sensação de quando eu recebia a ligação era de uma alegria imensa, mas o coração chegava a doer só de pensar que uma família teve a misericórdia de doar os órgãos de alguém tão amado. Eu agradecia e chorava pela ligação”, conta. Ela afirma que foi três vezes ao HCPA para exames finais, mas não era para ser. Hoje, faz dois anos que Elayne espera por um órgão compatível. “O transplante não é um tratamento final, ele prolonga a nossa vida. Como profissional da saúde, sabemos que é uma bênção cuidar do próximo, imagina dar a vida a alguém”, acrescenta.

Os dados da SMS do Estado, analisados pelo Ibiá, trazem à tona a suma importância de, em vida, as pessoas demonstrarem todo o seu interesse em doar para familiares. “Para quem tomou a decisão de ser um doador de órgãos e tecidos, é muito importante declarar isso em vida, basicamente avisando seus familiares desta intenção. Isso facilita muito que este desejo seja cumprido, pois a legislação brasileira determina que o consentimento para a doação deve obrigatoriamente ser dado pela família”, explica o médico Roberto Manfro. Rim, medula óssea e partes do fígado e pulmão podem ser doados em vida; córneas, coração, fígado, pâncreas, pulmão, rins, intestino e útero podem ser doados após o falecimento, além de válvulas cardíacas e tecido ósseo.

Quem pode ser um doador?
Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), existem dois tipos de doadores, sendo o em vida e o após ser diagosticado com morte encefálica. O doador em vida precisa ser uma pessoa em boas condições de doar o órgão ou tecido sem comprometer a sua própria saúde e aptidões vitais. A ABTO também ressalta que o candidato a doador deverá realizar uma avaliação médica para afastar a possibilidade de doenças que comprometam sua saúde ou a do receptor. Além disso, deve ser uma pessoa juridicamente capaz, pois a doação só pode ser feita com autorização judicial.

A morte encefálica é definida como “morte baseada na ausência de todas as funções neurológicas”, ou seja, é permanente é irreversível. Após diagnosticado com morte encefálica a pessoa não tem como mais “reviver” e assim, todos os outros órgãos ainda funcionam, possibilitando a doação. A ABTO relembra que a morte encefálica só ocorre e é diagnosticada em pacientes hospitalizados que estejam respirando com ajuda de aparelhos (ou seja, pessoas que morrem fora do hospital não se enquadram nesse tipo de doação).

Lista de espera e prioridades
A ABTO explica que para entrar na lista de espera de transplante, o médico do paciente precisa cadastrá-lo na lista única. Os receptores (pacientes que estão na fila) são separados de acordo com as necessidades e conforme o órgão que necessita, tipos sanguíneos e outras especificações técnicas. Este sistema de lista única tem ordem cronológica de inscrições, sendo os receptores selecionados deste modo, em função da gravidade ou compatibilidade sanguínea e genética com o doador.

Porém, a distribuição de órgãos depende de outros critérios além do tempo na fila, que variam de acordo com o órgão a ser transplantado e suas devidas necessidades. Os critérios de desempate são diferentes de acordo com o tipo de órgão ou tecido e a gravidade é motivo de priorização ou de atribuição de situação especial. Vale ressaltar que crianças têm prioridade quando o doador é criança ou quando estão concorrendo com adultos.

“Um sim salvou a minha vida”
O pedagogo e educador social, James Cassiano da Silva, 38, morador de Porto Alegre há 15 anos, foi pego de surpresa em 2019. Mesmo saudável, sem problemas de saúde, em maio teve a vida virada de cabeça para baixo ao descobrir que seu coração não estava nada bem, após uma crise de asma. Seu primeiro diagnóstico foi inflamação nos pulmões e um aumento considerável no coração. Internado para tratamento inicial e investigações, o diagnóstico seguinte foi de miocardiparia dilatada. “Após três meses de tratamento medicamentoso a insuficiência aumentou, então a equipe médica do Hospital São Francisco da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre decidiu me deixar internado para mais exames e tratamento mais conservador”, relembra.

James Cassiano da Silva, transplantado cardíaco desde 2020. Foto: arquivo pessoal

Desde esta internação, James foi incluído na lista de transplante. “Nesse dia em diante minha vida mudou outra vez. Eu não sabia muitas coisas sobre transplante, foi quando decidi buscar informações e passei a militar na causa da doação de órgãos e tecidos, com o objetivo de levar a informação para as pessoas na mesma condição em que eu me encontrava”, destaca. Com o perfil no Instagram @jamescassianooficial, mostrou como era viver com insuficiência cardíaca e a expectativa da espera por um novo órgão.

“A espera não foi nada fácil, mas o cuidado e o carinho de toda a equipe do hospital, da minha família, amigos e conhecidos foi fundamental para minha sobrevivência durante este período e também após receber um novo coração”, conta. A espera durou seis meses. “No dia 1º de janeiro de 2020 meu médico me ligou perguntando se eu ainda queria um coração novo. Eu disse “claro, estou pronto”. Daí, se inicia um mix de sentimentos dentro de mim, alegria, medo, certeza, tristeza, esperança, fé e oportunidade.”, relembra.

Por volta de meia noite, James seguiu para o bloco cirúrgico, segundo ele, tranquilo, pois “sabia que tudo ia dar certo”. Às 5h50min ele já retornava para a UTI cirúrgica; por volta das 10h45min, lembra que foi extubado. “Eu já estava lúcido e orientado, pois queria viver cada segundo da nova vida”, declara. Conforme James, a recuperação foi muito boa e saudável, sem ocorrências graves. Para sua família doadora, James deixa um recado de pura gratidão. “Sou e serei eternamente grato a vocês, pelo ato de amor a vida e por me darem uma nova oportunidade de viver, me dando a chance de ver meus filhos crescerem e eu poder a voltar a ser quem eu era antes da doença me limitar e trancar em um quarto de hospital! A todas as outras famílias doadoras: muito obrigado”, conclui.

Projeto Cultura Doadora
O projeto Cultura Doadora, criado há 10 anos pela Fundação Ecarta, foi idealizado pelo presidente Marcos Fuhr e atualmente coordenado pela jornalista Glaci Salusse Borges. O objetivo do projeto é contribuir na formação de uma cultura de solidariedade e de atitude proativa para a doação de órgãos e tecidos, além de na qualificação da infraestrutura de atendimento à saúde no Rio Grande do Sul. Para os gestores do projeto, uma cultura doadora individual e social deve integrar uma concepção de vida, de cidadania e se constituir em valor universal que consagra a vida como bem mais precioso.

Foto: istock

O Cultura Doadora é dirigido aos professores e às instituições educacionais, mas também a qualquer instituição que tenha interesse no tema. As atividades promovidas pelo projeto não têm custo. As instituições de ensino e demais organizações que desejarem abordar o assunto podem entrar em contato com a produção do projeto através do email [email protected]. Todo o trabalho é realizado com o apoio voluntário de médicos, enfermeiros, assistentes sociais e demais profissionais da saúde atuantes na área de transplantes, além de pessoas que estão na lista de espera, pessoas transplantadas e famílias doadoras.

Segundo a assessoria de imprensa do Cultura Doadora, nestes 10 anos de atividade o projeto constituiu uma grande rede de parceiros especializados na área em todo o país, assim como famílias doadoras, transplantados que disponibilizam seu conhecimento para informar sobre este processo que depende da mobilização da sociedade para acontecer. Neste período foram realizadas dezenas de palestras, campanhas, mobilizações e divulgações de todos os aspectos que envolvem a doação e o transplante de órgãos.

Atuação em Montenegro
Montenegro é um exemplo de como a sensibilização para o tema transforma a realidade. O município do Vale do Caí não tinha nenhum doador, mesmo tendo um hospital 100% SUS. Glaci Salusse Borges relembra que o trabalho em Montenegro foi muito intenso em 2018, dando destaque a parcerias como o Jornal Ibiá, doutora Tatiana Michelon, Hospital Montenegro (HM) 100% SUS e a Organização de Procura de Órgãos. Tudo iniciou em março daquele ano, com palestras para o Colégio Sinodal Progresso. A partir daí, o projeto esteve com órgãos públicos, sindicatos, cursos técnicos, ensinos superiores e mais empresas. Após um movimento articulado no município a partir de 2018, com gestores, empresas, sociedade e a mídia local, o volume de doadores chegou a 62% em menos de dois anos, sendo nove famílias doadoras do Vale do Caí que salvaram a vida de 17 pessoas. “Trabalhamos até o início de dezembro intensamente. Nosso trabalho no Cultura Doadora é precioso. Salvar vidas e defender o SUS em meio ao caos que vivemos desde 2016 é revolucionário”, destaca Glaci.

Para a coordenadora, falar sobre doação e transplantes o ano todo, assim como ter espaço no jornal local e ocupar espaços públicos faz toda a diferença para a cidade. Ela destaca, ainda, o trabalho de membros do HM, que sempre estiveram muito presentes para tratar do tema. “Cabe a comunidade se interessar mais e buscar conhecer o assunto. Vale lembrar que temos muito mais chance de precisarmos de um órgão do que virmos a doar e isso pode acontecer com você, com um familiar, um amigo ou colega”, ressalta.

Ela reitera a importância do conhecimento acerca do assunto e de assuntar o tema com os mais próximos. “É a família quem vai estar junto a nós quando morrermos, e é ela quem vai autorizar ou não a doação. Se a família souber que dessa informação sobre ser ou não doador, tudo fica um pouco mais fácil e alivia bastante o peso e a dor do luto. Muitas vidas são salvas com um sim da família. Converse com a sua família. Doação de órgãos é vida que segue”, enfatiza.

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