INTERCÂMBIO leva professora a dar aulas on line para estudantes da Geórgia (EUA)
Como uma jovem nascida no interior de Montenegro consegue se tornar professora numa das mais respeitadas universidades americanas? A resposta é uma combinação de esforço, apoio da família, formação em boas escolas e, claro, um pouco de sorte. E o mais interessante é que toda esta caminhada foi trilhada em instituições públicas. Primeiro, nas escolas estaduais Osvaldo Brochier, de Santos Reis, e São João Batista, no centro de Montenegro. Depois, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O nome dessa vencedora é Kaiane Mendel, de apenas 24 anos, que desde o começo de setembro trabalha como professora assistente de Língua Portuguesa na Universidade da Geórgia, dos Estados Unidos. Não fosse a pandemia do novo coronavírus, agora ela estaria lá, no sudeste americano, ensinando os gringos a conjugar nossos verbos. Graças à tecnologia, porém, Kaiane faz o seu trabalho, de 20 horas semanais, a partir da casa dos pais, em Santos Reis, onde está refugiada desde março, quando a Covid-19 ganhou espaço nos noticiários e nos hospitais. Santa Internet!
Formada em Letras pela UFRGS, Kaiane se inscreveu em 2019 no programa Foreign Language Teaching Assistant (FLTA), realizado pela Fulbright, uma instituição que promove intercâmbio de professores entre diversos países. Nos EUA, é comum os estudantes, independente do curso, aprenderem um segundo e até um terceiro idioma. “Já tinha convivido com profissionais americanos ligados ao FLTA, que trabalharam aqui como assistentes dos professores de Inglês, e resolvi me inscrever”, recorda.
A seleção teve mais de 300 participantes de todo o Brasil e Kaiane ficou entre os 20 escolhidos. A vaga foi conquistada após uma maratona. A lista de critérios para a seleção era longa. Além de uma nota alta em exame de proficiência em Inglês, foi preciso arrumar três cartas de recomendação assinadas por professores ou chefes e redigir textos em Inglês falando de experiências pessoais e profissionais e das expectativas em relação ao programa. Depois, foi marcada uma entrevista, também em Inglês. “Ajudou bastante o fato de, na época, eu já ter concluído o mestrado e iniciado o doutorado”, comenta. Aprovada, Kaiane esperava viajar em agosto, mas o sonho foi temporariamente adiado.
Hoje, de Santos Reis, ela conversa diariamente com alunos da Universidade da Geórgia e os ajuda a compreender melhor o idioma brasileiro. Em virtude das diferenças de fuso-horário, os contatos costumam ocorrer no fim da manhã e no início da tarde. Para alguns, estes diálogos funcionam como uma espécie de reforço aos conteúdos recebidos em sala. Para outros, que estão estudando em casa em função da Covid-19, é aula mesmo. Nos próximos dias, Kaiane deve criar também grupos de estudo.
O desejo de viajar segue vivo. Dependendo da evolução da pandemia, existe a chance de embarcar em janeiro e concluir o programa na terra do Tio Sam, permanecendo por lá até o fim de maio. “Mas também já anunciaram a possibilidade de ficarmos mais um ano no programa e, neste caso, eu irei em agosto de 2021. Claro que isso depende do meu desempenho”, explica a professora.
Todos os custos de visto e viagem são cobertos pela Fulbright e o professor recebe um valor mensal de acordo com a estimativa de custo de vida da região, para cobrir moradia e alimentação. “Dependendo da universidade, a pessoa recebe um valor bem baixo, mas pode morar em residência estudantil e usar os restaurantes universitários”, revela Kaiane. Obviamente, a verdadeira motivação para participar do programa não é financeira. “É pela experiência profissional e de vida”, sublinha.
Aproveitando as oportunidades
Kaiane saiu de casa em 2013, depois de ser aprovada em três vestibulares: para Jornalismo, na Universidade Federal de Santa Maria, e para Letras, na Unisinos e na UFRGS. Optou pela “federal” de Porto Alegre e, de um dia para outro, trocou a calmaria de Santos Reis pelo tumulto da capital. “Por dois anos, morei em um pensionato de freiras”, recorda.
Enquanto fazia a graduação, a “alemoazinha” do interior trabalhou como professora de Português para Estrangeiros na própria UFRGS e deu aulas num curso pré-vestibular popular, ajudando outros jovens a fazerem a mesma caminhada que ela realizava. Também foi nesse período que deu aulas no Colégio Julinho, uma das maiores escolas estaduais de Porto Alegre. “Foi um choque de realidade, pois pude constatar o quanto eu fui privilegiada por estudar em escolas com excelente infraestrutura”, declara.
Concluída a graduação, Kaiane iniciou imediatamente um mestrado em Linguística Aplicada, na própria UFRGS, e hoje é doutoranda na mesma área e instituição. A professora explica que o ensino de Português para “estrangeiros” sempre foi muito presente em sua vida. “Quando comecei o Ensino Fundamental, eu tinha uma colega que só sabia falar Alemão porque esse era o idioma em que os pais e os avós se comunicavam e eu procurava ajudá-la. Muita gente acha que essa é uma situação que ficou no passado, como na época da minha mãe, que também auxiliava na comunicação entre colegas que falavam Alemão e os professores, que ensinavam em Português, mas na verdade isso ainda acontece”, ensina. “O Brasil é um país multilíngue, com as línguas de imigração, as línguas indígenas e a Língua Brasileira de Sinais, por exemplo.”
Quando olha para trás e avalia sua trajetória, Kaiane reforça as oportunidades que teve graças à UFRGS. Não apenas pelo ensino, mas pelas portas que abriu. “Foi graças à universidade que andei de avião pela primeira vez e fiz a minha primeira viagem internacional”, enumera.
Da família, veio o estímulo e a infraestrutura. “Meus pais sempre deram livros para mim e para o meu irmão. Logo que houve a possibilidade de instalar internet em casa, eles nos proporcionaram isso. Depois, a minha mãe também voltou a estudar e se tornou professora, sempre aproveitando as chances que apareciam”, sublinha.
Kaiane quer ir para os Estados Unidos, mas não pensa em ficar por lá, embora tenha riscado a palavra “nunca” do seu dicionário. Ela até enxerga uma certa ironia no momento que está vivendo. “Sete anos depois de sair de casa, eu voltei às minhas origens e estou mais global do que jamais estive”, brinca. Milagres da tecnologia.
Sobre o futuro, a ideia é tentar devolver um pouco das oportunidades que teve, indo para a sala de aula. “Talvez eu busque uma vaga em algum instituto federal de educação”, planeja. Depois de uma temporada nos “states”, de preferência.