Bate-papo entre professores tratou de temas atuais e recorrentes na esfera pública
Ter ideias contrárias faz parte da vida em sociedade. No entanto, nos tempos atuais é cada vez mais difícil dialogar e tentar entender o outro. Vivemos numa época de extremos. Usando um termo próprio dos gaúchos: vivemos a grenalização das coisas. Há de se escolher entre chocolate ao leite ou chocolate branco, o meio amargo não é opção. Há de ser vestir de branco ou preto, o cinza não é viável. No meio disso entram outras questões como ideologias, patriotismo e verdades absolutas.
Para tentar desfazer um pouco do emaranhado de ideias, ideais, extremos e paixões que é esse momento atual, o Estúdio Ibiá recebeu na quarta-feira, dia 1º, a professora doutora em História e professora de Sociologia Mariana Schossler; o professor de Filosofia e também graduado em Letras Cristian Moisés Closs Stahl; e o professor de História e pós-graduado em Teologia, Sociedade e Gestão Escolar Juliano Souza de Oliveira.
O dicionário Aulete define ideologia como o conjunto das ideias e convicções próprias de uma época, de uma sociedade, de uma classe e que caracterizam uma situação histórica. No encontro, Cristian explicou que a palavra ideologia surgiu no século XIX com o intuído de representar a ciência das ideias. “Hoje, na modernidade, a ideologia começa a ter outros sentidos”, observou.
Mariana destacou que ao pensar ideologia como um conjunto de ideias é possível dar sentido para a sociedade e justificar questões dessa sociedade, como as desigualdades. “Elas (as ideologias) podem ser utilizadas para construir uma visão de mundo que vá fazer com que os indivíduos façam parte daquele mundo”, afirmou. A docente apontou como exemplo que uma sociedade capitalista pode ter uma ideologia que justifique as desigualdades sociais enquanto que numa sociedade comunista pode se ter a ideologia de que não há diferença entre as pessoas. “Todos temos ideologias, nem sempre nós vamos concordar, mas nós precisamos aprender sobre o outro para poder criticá-lo, então, com convicção”, reforçou ao repetir um ensinamento que busca passar aos seus alunos.
A professora doutora em História explicou, ainda, que há exemplos ao longo da história de ideologias que acabam excluindo parte da população e outras ideologias que tentam agregar. “(Ideologia) Certa e errada, tecnicamente, não existe porque todo mundo tem uma ideologia, todo mundo vai considerar a sua ideologia correta. Aí vale pensar, também, até que ponto o que para mim é correto pode ser correto para o outro e o que aquilo que eu penso ser correto faz em relação ao outro. Eu permito o outro, eu dou direito ao outro de existir?”, ponderou. “Todos temos ideologias, todos vamos ter as nossas verdades, mas a gente tem que ter um cuidado muito importante: a minha ideologia está baseada no direito do outro não existir? Se a minha ideologia está baseada no fato de que algumas pessoas, alguns grupos sociais, não podem existir, temos um problema”, enfatizou e complementou dizendo que é preciso respeitar e entender os outros, uma vez que todos dividimos o mesmo espaço.
Diálogo e respeito são ferramentas importantes
Em meio à questão de existir uma ideologia certa ou errada, Juliano reforçou que os momentos de diálogo são importantes para aprofundar a discussão. “A gente tem que ter embasamento e conversar e sempre aprender com quem pensa diferente da gente, desde que haja um embasamento técnico e alguma coisa que ele possa realmente acrescentar”, comentou o professor de História. “Debater ideologia nos ajuda, inclusive, a formar um mundo melhor onde as pessoas consigam olhar para os outros sem preconceitos, sem reticências, sem tantas divisões que a gente vê não só no Brasil, mas no mundo como um todo”, complementou Mariana.
A professora doutora em História apontou ainda dois importantes passos para se manter a boa convivência entre ideologias conflitantes: manter um diálogo saudável, sem ofensas e que respeite as leis e saber respeitar as diferenças e entender que cada pessoa vem de contexto próprio. “É importante compreender que cada indivíduo tem um contexto diferente, cada indivíduo vem de uma situação social diferente, cada indivíduo aprende coisas diferentes e tem uma educação diferente e isso pode contribuir para visões de mundo diferentes”, enfatizou.
Trazendo o debate ao campo filosófico, Cristian ressaltou a importância de as discussões sobre os mais variados temas manterem-se apenas no campo do debate. “Fora daquele campo nós somos pessoas normais, somos pessoas que vivemos em uma mesma sociedade e dividimos, inclusive, o mesmo ônibus, o mesmo banco, o mesmo hospital”, reforçou.
Juliano lembrou, ainda, a necessidade de não se confundir liberdade de expressão com poder falar tudo o que se pensa, sem ter filtros, diálogo ou embasamento. O professor alertou também que, hoje, o acesso à informação é facilitado e que isso tem que ser usado com atenção. “Hoje, está na palma da nossa mão. Nós temos a informação, o que nós vamos fazer com essa informação é o que vai ditar o nosso futuro”, apontou.
Os perigos das paixões e das verdades absolutas
Durante a conversa, Cristian chamou atenção para algo que ocorre com frequência em discussões sobre os mais diversos assuntos: o envolvimento das paixões. Segundo ele, isso ocorre quando se sai do campo da racionalidade e entra-se no campo das emoções fazendo com que a razão já não mais consiga ter controle da situação. “Se eu sair do campo da racionalidade e vou para o campo das emoções eu perco a razão, ou seja, eu perco a capacidade que eu tenho de discernir o que é certo e o que é errado partindo do princípio do contexto que eu estou vivendo”, alertou.
Juliano observou que ao apaixonar-se é comum que o indivíduo não consiga ver defeitos no alvo da paixão mesmo se alertado. “Também nas ideias sociais e políticas a gente tem disso”, enfatizou. O docente alertou que saber ouvir e ter empatia nesses momentos é fundamental. Ele alertou ainda para o perigo que se é misturar paixões e ideologia com patriotismo, o que pode se transformar em ufanismo.
Outro perigo apontado pelos debatedores foi o das verdades absolutas que às vezes se apresentam. Conforme Cristian, a verdade é buscada pelo ser humano desde que ele se descobriu capaz de pensar. Dentro dessa busca, há grupos que criam o discurso de posse de verdades – e símbolos – para se legitimar e criar identidade. “Alguns grupos já disseram ‘eu sei o caminho, eu tenho a verdade absoluta’, mas isso é o discurso que está sendo apresentado. Nós podemos muito bem dentro do campo do debate, no campo ideológico, desconstruir essas verdades apresentando outras verdades”, comentou o professor de Filosofia.
Símbolos podem ser apropriados
Um movimento comum na história é a apropriação de determinados símbolos por ideologias. Para falar sobre isso, Juliano trouxe o exemplo da bandeira brasileira. “A bandeira representa todos nós brasileiros. Eu já tive a oportunidade de estar em outros países e quando eu via a bandeira do Brasil me dava um sentimento de acolhimento. Hoje, eu sendo um profissional das Ciências Humanas, ao visualizar uma bandeira do Brasil já tenho outra leitura porque esse símbolo, de certa forma, foi apropriado por parte da sociedade”, comentou. O professor reforçou, no entanto, que a bandeira não deixa de ser um símbolo brasileiro e que não há mal em se amar a bandeira de seu país, mas que é preciso ter cuidado para isso não se transformar em ufanismo.
Além disso, Juliano lembrou que a própria bandeira brasileira é uma apropriação feita pelos republicanos da bandeira imperial. “Eu aprendi na escola, por exemplo, que o verde representava as nossas matas e o amarelo representava as nossas riquezas mineiras. Na verdade, o contexto é outro: o verde representa a Casa de Bragança, que é a família de Dom Pedro I, e o amarelo representa a Casa de Habsburgo, que é a família da dona Leopoldina. Os republicanos apropriam-se desse símbolo”, destacou.
Reforçando a fala de Juliano, Mariana salientou que o lema “ordem e progresso” da bandeira brasileira remete ao positivismo, corrente de pensamento adotada por muitos dos pensadores brasileiros da época. “Muito desse lema “ordem e progresso” tem a ver com uma procura pela perfeição, como se um regime republicano fosse melhor ou mais perfeito que um regime monárquico, o nosso império que tínhamos até então; como se a sociedade pudesse evoluir a partir de certos investimentos em ciência, essa ideia de progresso”, explicou. “São ideologias que são utilizadas em um contexto muito específico, que é esse contexto da criação da república, e que estão com a gente até hoje. Mas que sentido isso tem para a gente hoje? Seria o mesmo de 1889?”, questionou.