Da traição até a volta por cima: conheça a história da “Maria”

RECONHECER a violência é o primeiro passo para se livrar dela

No começo da entrevista peço à Maria (nome fictício dado à vítima de violência psicológica) que conte sua história e o motivo que colocou fim ao seu relacionamento de sete anos e que teve como fruto uma filha. A resposta é surpreendente. “Foi um casamento bom com altos e baixos, como qualquer matrimônio, nada fora do comum. Foi uma relação que deu certo”. Chego a pensar que o caso não serviria para o enfoque buscado para a matéria. Contudo, a conversa segue e percebo que trata-se de uma grande história de coragem e superação.

E o melhor: no final do relato, a jovem de 33 anos mostra que falar sobre a própria vida serviu para avançar mais um degrau na sua escala de superação. “Na verdade, não foi um casamento bom. Eu já sofria abuso emocional há muito tempo e nem me dava conta. Para mim, aquilo já era comum”, reavalia a mulher.

Maria é uma entre tantas mulheres que sofrem com a violência psicológica sem notar que o comportamento de seu companheiro está acabando com sua autoestima e que, além disso, pode resultar em desdobramentos ao ponto de haver agressão física e até feminicídio. É considerada violência psicológica qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima, prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher. Maria experimentou essas aflições. “Ele causou um estrago na minha mente. A gente passa a achar que a culpa é nossa, que em algum momento a gente exagerou, fiz isso muitas vezes”, relata.

Enquanto suportou as traições do companheiro, o casamento parecia bem. Foi só depois de ter provas concretas de uma das traições que ela resolveu erguer a cabeça e sair do relacionamento. “Eu sempre pensava no que seria melhor para minha filha, que na época tinha quatro anos. No dia da separação, esperei ela dormir e fui falar com ele”, lembra Maria. “Disse que a gente ia se separar por que eu tinha descoberto as traições. Ele falou pouco, não brigamos”, detalha a mulher.

O homem não acreditava que Maria fosse conseguir trabalho e um novo local para morar. Algumas vezes, chegou a dizer para ela desistir da ideia de ir embora e continuar na casa dos pais dele, local onde moravam. Mas, ela correu atrás de seus objetivos. Em cerca de um mês estava empregada e de casa nova.
Sem imaginar o que estava por vir, Maria tentou manter a paz no vínculo que era preciso manter com o pai de sua filha. “Pedi a ele para mantermos uma relação sem discussões, para que nossa filha não ficasse abalada com a separação, não queria que ela pensasse que pai e mãe haviam virado inimigos. Ele concordou”, conta a vítima.

Novo namoro de Maria colocou fim na “relação de paz” com o ex-marido
Durante três anos, o ex-casal manteve uma relação neutra. Eles conversavam, principalmente, quando ele ia buscar a filha para passar alguns dias na casa dele. Porém, quando soube que sua ex-esposa estava iniciando um novo relacionamento, o indivíduo mudou sua postura.“Ele não aceitou, começou a fazer ameaças por telefone. No começo, dizia que a preocupação era por causa da menina, tentei entender o lado dele como pai. Falei para que não se preocupasse por que eu conhecia bem o meu atual namorado, ele é uma pessoa boa”, porém o argumento de Maria não foi suficiente para cessar o problema. “Ele continuou ficando cada vez mais alterado.”

O homem foi até o local de trabalho da ex-mulher e protagonizou uma cena de ciúmes e ameaças. “A loja estava cheia de clientes. De longe vi ele chegar. Estava muito alterado. Fui até ele, começou a me ofender, gritava, parecia que ia me agredir. Fiquei apavorada”, lembra. Até aquele dia, ela não havia se dado conta da natureza violenta do pai de sua filha. “A única coisa que pensava é que ele iria me bater. Pedi várias vezes para que fosse embora. A última coisa que ele falou foi que, se me encontrasse na rua iria me arrebentar. Era para eu me preparar, por que, se não morresse ia ficar muito tempo na UTI.”

Maria retornou à loja, abalada com as ameaças. Ao ser amparada por sua patroa, ela também foi incentivada a denunciar o caso à polícia. “Eu morro de vergonha. Foi muito difícil ir na delegacia, nunca passei por isso na minha vida”, conta. Ao procurar ajuda policial, ela não imaginava a importância de sua decisão.

Perseguição e surto agressivo
Para sua segurança, Maria foi orientada pela polícia a passar alguns dias na casa de um familiar. A polícia solicitou ao Judiciário medida protetiva para a vítima, mas a tentativa de ataque do agressor ocorreu antes mesmo de ele ser notificado. Através de mensagens e ligações para Maria, e para o irmão dela, o homem extrapolou as ameaças. “Ele disse que se precisasse iria até o inferno para me buscar, mas que ilesa eu não sairia”, lembra Maria.

Uma discussão iniciada com o ex-cunhado, através do celular, por pouco não acabou em tragédia. Mais uma vez alterado, o homem disse que iria até a casa do irmão dela. Desesperada, Maria trancou a filha em um quarto e pediu para a sua cunhada chamar a Brigada Militar. “Eles chegaram lá e flagraram quando o meu ex estava descendo do carro. Ele foi preso, mas, foi solto na mesma noite, porque ainda não tinha recebido a notificação da medida protetiva”, conta Maria.

Depois de saber que deveria se manter afastado da ex-mulher, caso contrário seria preso, o homem ainda chegou a fazer novas ameaças e chantagem emocional, inclusive, disse que se mataria. “Ele dava a entender que acreditava que eu iria acabar voltando para ele”, comenta Maria. Para se livrar da perseguição psicológica do ex-marido, Maria precisou da ajuda da Patrulha Maria da Penha da BM. Durante um ano, com regularidade, os patrulheiros, do 5º Batalhão da Polícia Militar, visitaram a mulher para garantir sua segurança física. “Sempre iam ao meu trabalho. Nunca pensei que seria tão bem atendida como fui por eles. Todos foram incríveis, muito prestativos”, opina a vítima assistida pela Patrulha.

Hoje Maria vive de forma mais tranqüila, mas ainda há marcas do trauma deixado pelo ex-marido. “Ainda tenho medo dele. Pode passar o tempo que for, sempre vou precisar trabalhar a mente para não permitir que isso volte a me afetar”, comenta. “É difícil uma mulher que nunca passou por isso entender. Têm pessoas que dizem que a mulher gosta de apanhar, ouço muito isso. Elas não entendem a complexidade da situação.”

 

Por que para algumas mulheres é difícil denunciar a violência?
A coordenadora da Patrulha Maria da Penha, soldado Aline Paim, observa que romper a violência é difícil para todas as mulheres que passam pelo problema, independente de qual seja a violência sofrida (física, patrimonial, sexual, psicológica ou moral). A situação é ainda mais difícil quando existem filhos, a mulher não possui renda própria e nem familiares com quem possa contar, por perto.

Aline Paim é coordenadora da Patrulha Maria da Penha. Fotos: Arquivo Jornal Ibiá

“As mulheres que sofrem violência não falam deste problema, muitas vezes, por vergonha, medo, constrangimento, pois em muitos casos o agressor constrói uma autoimagem de parceiros perfeitos, bons pais, bom amigo, o que dificulta ainda mais para a vítima revelar para a família e amigos próximos a violência sofrida”, comenta Aline.

A Patrulha Maria da Penha atende mulheres vítimas de todos os tipos de violência. Porém, Aline considera que as violências psicológica e a moral são as mais difíceis de serem denunciadas. “Elas não deixam vestígio físico, a dor é na alma e o sofrimento pelo qual estão passando não pode ser visto. As vítimas vivem sufocadas com todo tipo de ameaças e com passar do temp passam a suportar as humilhação com medo”, ilustra a soldado.

Como a sociedade pode encorajar as vítimas de violência doméstica?
“Nossa principal contribuição como sociedade é não fazer julgamentos, pois nestes casos específicos de violência psicológica e moral, só a vítima sabe exatamente o que está passando e desacreditá-la é o mesmo que desmotivá-la a romper com esse ciclo de violência que está vivenciando e que na maioria das vezes evolui para a violência física e até o feminicídio”, diz a coordenadora da Patrulha Maria da Penha, Aline Paim.

A PMP atende vítimas de violência doméstica que possuem medida protetiva

A soldado orienta ainda que, pessoas que têm uma relação mais próxima com uma vítima, ao identificarem uma relação tóxica, com comportamento que caracterize violência moral ou psicológica, fale a respeito do problema, de como vê a situação, para que a vítima se dê conta de que está passando por esse tipo de violência. “Existem casos em que a própria vítima não se dá conta do que está acontecendo, pois pensa que certas atitudes de seu companheiro são normais dentro do contexto em que se encontra e não se caracteriza como violência. Elas passam anos de suas vidas suportando todos os tipos de humilhação e ofensas. Essa atitude refuta o ditado popular, que diz ‘em briga de marido e mulher, não se mete a colher”, pontua.

Sobre a Patrulha Maria da Penha
A Patrulha Maria da Penha do 5º BPM, desde a sua criação, em 2019, atua diariamente apoiando e orientando vítimas de violência doméstica que possuem medida protetiva de afastamento do agressor. Desde então, foram efetuados 3.113 atendimentos, foram cadastradas 417 vítimas e 350 mulheres aceitaram ter o acompanhamento dos patrulheiros.

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