Psicóloga explica que o problema não é um mito e pode trazer diversas consequências, especialmente entre jovens
No mês passado, estudantes da Universidade de Standford, nos Estados Unidos, realizaram um protesto em frente à loja número 1 da Apple – criadora do IPhone e de diversos outros produtos tecnológicos. O grupo, liderado por graduados em Ciências da Comunicação, cobrava uma atitude por parte da empresa para que ela, de alguma forma, trabalhasse para reduzir o “vício” das pessoas nos smartphones que comercializa.
A sugestão é que a Apple disponibilize relatórios diários onde os usuários possam acompanhar quanto tempo passaram usando determinadas funções dos aparelhos. Eles também pedem um melhor controle de notificações, de modo a reduzir distrações que possam desviar a pessoa de atividades importantes em seu dia a dia. Os estudantes divulgaram ainda que, conforme sua pesquisa, 69% dos adultos verificam seus IPhones pelo menos uma vez por hora. 50% dos adolescentes se dizem viciados nos aparelhos.
O movimento não é único e não se resume somente aos produtos da Apple. Une-se a uma crescente de pesquisas e manifestações que exigem das empresas medidas mais concretas que possam auxiliar as pessoas que não conseguem controlar o tempo de suas vidas que dedicam às tecnologias.
E não é preciso ir muito longe para localizar indivíduos assim. É bem provável que nós mesmos, ou algum parente próximo, passemos mais tempo do que o normal usando um smartphone. O eletricista Ezequiel do Amaral, por exemplo, conta que já não imagina sua vida sem o aparelho. “Quando eu não estou trabalhando, eu fico umas quantas horas usando. Vira um costume”, revela. Aos 43 anos de idade, ele ressalta que precisa se controlar para que, durante o trabalho, não mexa no aparelho. “Tem que ter controle.”
Fato é que este controle não é fácil para algumas pessoas. Muitas adquirem verdadeiros vícios, podendo até ter crises de abstinência se afastadas deles. A situação é séria e deve ser acompanhada de perto. Para esclarecer sobre esta relação “indivíduo x tecnologia”, o Jornal Ibiá entrevistou a psicóloga montenegrina Mara Cristiane Von Mühlen, que é especializada em psicopatologias e dependência química.
Relações familiares prejudicadas
Como a Psicologia percebe a relação das pessoas com os smartphones?
De modo abrangente, a relação com os smartphones, se respeitadas algumas limitações, pode ser entendida como uma relação necessária atualmente, dado o momento que vivemos. Trata-se de uma ferramenta que facilita a comunicação e acesso rápido a informações, em diversas esferas.
Quando essa relação se torna um problema?
Quando a relação entre a ferramenta e a pessoa se torna disfuncional, inicia-se o “problema”. Depende da intensidade e da frequência do uso, sendo que a dependência, neste caso – como nos demais comportamentos aditivos – se percebe quando ocorrem prejuízos sociais e acadêmicos devido ao uso do smartphone.
Que prejuízos sociais são esses?
Eles são percebidos no desempenho acadêmico (queda do rendimento escolar), na qualidade das relações pessoais “cara a cara”, no comprometimento com a qualidade do trabalho, etc. A pessoa mantém o uso do aparelho apesar das reclamações da chefia, dos pais, dos amigos ou dos professores. É quando o uso da ferramenta se torna prioridade na vida do sujeito.
Em sua experiência profissional, a senhora já teve que lidar com algum problema envolvendo essa relação “não sadia” com a tecnologia? Como foi isso?
Sim, é bem frequente que pais busquem ajuda para os seus filhos – adolescentes, principalmente – por questões como essa. O adolescente passa grande parte do seu dia no uso do smartphone, prejudicando as relações familiares (ou em decorrência de relações já disfuncionais). Eles não cumprem as tarefas estabelecidas na casa, atrasam as atividades da escola, entre outras coisas.
Existem estudos sobre consequências na saúde desta relação “não sadia” com os aparelhos?
Já existem muitos estudos concluídos e outros tantos em andamento. Ditam atrasos na fala, atrasos na escrita, dificuldade de lidar com frustração, maiores níveis de ansiedade, maiores níveis de depressão, alterações comportamentais, disfuncionalidade no sono, entre outros.
Pode haver crise de abstinência na pessoa que fica afastada do smartphone por certo tempo?
A dependência faz parte de um comportamento aditivo, independentemente de qual seja o objeto de busca do prazer – se jogos digitais, se smartphones, se alimentação, se drogas. Uma vez estabelecida a dependência, a ausência do objeto causa crises de abstinência, que se caracterizam normalmente por irritabilidade, aumento da ansiedade, angústia, dentre outros sintomas.
Se a pessoa se percebe em uma relação nociva com este tipo de tecnologia, o que ela pode fazer?
Geralmente é a família, os amigos ou os professores que são os primeiros a perceberem. Não difere muito de outros comportamentos aditivos. A pessoa nem sempre se dá conta de que está dependente e começa a fazer uso de diversas explicações para justificar o uso. Sabe aquela frase “não sou viciado, paro quando quiser?”. A pessoa se dar conta de que está dependente é um primeiro passo importantíssimo, pois ela vai buscar ou aceitar ajuda profissional. Nesses casos, a Terapia Cognitivo-Comportamental tem se mostrado eficaz. Em casos mais graves, entra a terapia combinada, em que além da Terapia Cognitivo-Comportamental, se conta com a ajuda de um tratamento medicamentoso, prescrito por psiquiatra.
Particularmente, como a senhora vê essa relação criada com a tecnologia?
As necessidades são criadas, sabemos disso. Até pouco tempo, não se precisava de muitas coisas que hoje são fundamentais. Não podemos correr contra a inserção da tecnologia na vida das pessoas, dado os inúmeros benefícios que ela oportuniza. Então, onde está o problema? Na intensidade e na frequência do uso. Pra começar, na maioria dos casos, os pais/cuidadores inserem os aparelhos na vida das crianças de forma precoce, no sentido de acalmá-los, de entretê-los, substituindo um tempo precioso de brincar, passear ou fazer coisas juntos. Os filhos aprendem observando, não importa com que idade. Eles observam os pais cada vez mais ligados aos seus dispositivos. Quando se espera medidas das empresas que lucram com o uso do smartphone é esperar que o “inimigo” resolva o problema. Além disso, é mais fácil responsabilizarmos os outros, não é? Por que nossos filhos passam tantas horas com os smartphones? Quanto do nosso tempo estamos dedicando a uma interação saudável com eles?