Consciência Negra: registro do passado para a preservação do presente e construção do futuro

Vivência negra. Bate-papo no Estúdio Ibiá nessa quarta-feira abordou o tema

O passado é algo essencialmente constitutivo do presente e do futuro. Para preservar a identidade de um povo, suas raízes e culturas, o resgate do passado é fundamental. Entretanto, mesmo após 133 anos do fim da escravidão, uma das marcas desse período que ainda perpassam a sociedade é a tentativa de apagamento histórico do povo negro. O tema foi um dos tópicos levantados no programa Estúdio Ibiá, nessa quarta-feira, 17.

Neste sábado, dia 20, é celebrado o Dia Nacional de Zumbi de Palmares e da Consciência Negra, feriado em mais de mil cidades brasileiras e uma referência à morte de Zumbi, negro pernambucano que teve sua vida marcada pela luta contra a escravidão. A data propõe uma reflexão sobre a inserção dos negros na sociedade brasileira, e para isso o bate-papo teve como convidados o jornalista e sociólogo, Rogério Santos; a professora e integrante do Coletivo Montenegro em Negrito, Camila dos Santos; o secretário de Habitação, Desenvolvimento Social e Cidadania de Montenegro, Luís Fernando Ferreira, e a pedagoga, Maria Izabel Vargas da Silva.

Rogério Santos é pesquisador no projeto Resgate do Negro no Vale do Caí. Foto: Arquivo Ibiá

Há cerca de 10 anos, o projeto Resgate do Negro no Vale do Caí pesquisa e levanta informações sobre a chegada do povo na região, além de destaques e histórias relevantes. Segundo o jornalista e sociólogo, Rogério Santos, que está à frente da pesquisa, o trabalho é baseado em um projeto que o professor Roberto Santos fez e custeou. “O Roberto, além de ser meu primo, foi meu padrinho de batismo. Sem falar que tive a oportunidade de falar com a secretária de educação da época. Ela disse que o Roberto fez um maravilhoso trabalho junto com a equipe e custeou para todas as escolas uma fita cassete. Dez anos depois, nenhuma escola tinha e quase ninguém comentava”, conta.

A fita cassete citada por Rogério era um resultado da pesquisa de Roberto, um documentário com o resgate da história do negro no Vale do Caí. Segundo o jornalista, com a sua inquietação e de muitos outros, começou então a rascunhar e desenvolver através de pesquisa o seu trabalho de Doutorado, focado no tema. “O Roberto detectou que o negro chegou em 1750 na região. No último livro da Márcia Martini, foi destacado que o documento oficial é de 1758. Nós conversamos e ela disse que tinha provas, porém, nossas provas sempre são discutíveis ou colocadas em dúvida”, comenta.

Ele ainda cita que a importância do povo negro não é reconhecida no Vale do Caí, diferente de outras colonizações como a alemã e açoriana. “Eu, que tenho 55 anos, enfrentei muita coisa e ouvi de uma professora de história: ‘você não tem história’. Hoje, tenho um filho de 25 anos que também passou por dificuldades”, diz. Rogério acredita que a coletividade e persistência tornará possível resgatar essa história.

Inquietude como mobilizadora
Pedagoga já aposentada, a educadora Maria Izabel Vargas da Silva é ativista da causa antirracista há décadas, e relata que tentava promover discussões no espaço escolar. “Desde o início do magistério me envolvi com esta questão, principalmente a partir da situação do governo militar que vivíamos. A discriminação, opressão e o ocultamento da vida dos negros e a provocação desta invisibilização da população negra, são questões que sempre me preocuparam”, declara.

Professora Maria Izabel destaca a necessidade de promover a discussão sobre a presença do negro no Vale. Foto: Reprodução Facebook

Como forma de debater o assunto, Izabel idealizou o projeto Kizomba, na escola Manoel de Souza Moraes. “A criação do projeto tem a ver com isso, de ler a respeito do próprio folclore nacional invalidado. […] Precisamos dar um jeito para que isso seja escrito”, fala.

A educadora relata que desde o início da década de 80 vem tentando reforçar a presença negra em Montenegro. “No dia 14 de agosto de 2019 aconteceu um encontro muito importante na Câmara de Vereadores de Montenegro, o qual foi sobre a questão do patrimônio histórico, com uma perspectiva de presente e futuro, e modos de valorização. No dia, foi necessário colocarmos, ao final do encontro, esta questão da presença negra em Montenegro, a qual não foi citada durante o evento”, relembra. O Seminário resultou em uma carta com colocações sobre a presença indígena e negra no Município.

Para além do registro histórico, Izabel cita essa necessidade de oficializar a presença negra em documentos como forma de ajudar na consciência e conquista da cidadania e respeito da sociedade. “Sou de família ferroviária, neste local são incontáveis as presenças negras e as histórias do que as pessoas fizeram. Isto precisa ser registrado. […] para honrar as memórias dos nossos antepassados”, completa.

Sociedade Floresta, em sua primeira reforma, na sede da rua Flores da Cunha. Foto: Arquivo Pessoal/Rogério Santos

Junto com a comunidade
No dia 3 de novembro, a Secretaria Municipal de Habitação, Desenvolvimento Social e Cidadania (SMAHD) de Montenegro lançou o Comitê Municipal de Enfrentamento ao Racismo. Segundo Luis Fernando Ferreira, secretário da pasta, o comitê é justamente para que se tenha uma estrutura, a fim de tentar descobrir quais são as situações que fazem com que a sociedade, como um todo, seja preconceituosa, além de – é claro – ressaltar a importância do povo negro que tanto contribuiu para a região.

O Comitê será formatado por pessoas da sociedade; representantes de entidades de classes, lideranças e interessados. “A demanda é pegar uma história de luta e colocar um pouco deste nosso perfil; abrir frente para que as pessoas possam aumentar o debate e abrir o poder público para que esta classe possa ter representatividade”, comenta.

Luis Fernando ressalta a importância do Comitê Municipal de Enfrentamento ao Racismo

Segundo Fernando, este momento de reflexão é importante, e declara qe há recursos e muitos avanços na temática. “Estamos criando isso, porque se não pudermos estar aqui para contar, que nossos filhos ou netos e lideranças novas possam. O Comitê está junto com a comunidade para que esta pauta do negro seja evoluída”, expõe.

O único secretário negro na gestão, e um dos poucos em mais de 140 anos de fundação de Montenegro, Fernando destaca que essa falta de representatividade é uma questão histórica. “Nós negros sempre temos que dar a mais para que as conquistas aconteçam. […] Este tópico que será colocado no site, para algumas pessoas pode ser apenas algumas palavras, mas para nós, como negros, será algo histórico”, declara.

Na próxima semana, será disponibilizado no site da Prefeitura de Montenegro a história do negro no Vale do Caí. “Será um marco! Daqui a uns dias será possível pesquisar a história no negro. […] É a mobilização: fazer um resgate em um coletivo de luta e resistência para que as causas dos negros sejam evoluídas”, fala o secretário.

Para Rogério, este é um grande avanço. “Ressalto que, as pessoas que estão nas escolas, principalmente as crianças e os estudantes negros, utilizam a ferramenta internet e pesquisam nos sites, entretanto, os registros não constam”, lamenta.

Integrante do Coletivo Montenegro em Negrito, a professora, Camila dos Santos, acredita que o ato de rever o site é muito importante. “Há mais de 10 anos, em seminários anteriores, palestrantes procuravam dados de nossa cidade e não havia registros da nossa participação na história de Montenegro. A cidade nos deve isso e, esta ação que está sendo planejada e promovida é tardia. Entretanto, como estamos ressignificando o momento, é importante”, diz.

Camila conta que o Coletivo nasce de três educadores: Jordana Porto, Alexandre Ferraz da Conceição e ela, com a proposta de transformação social. “O Montenegro em Negrito traz destaque para estas discussões sobre o racismo, e efeitos que trás em nosso dia a dia. O coletivo trabalha com a história, mas sempre com uma projeção de futuro”, explica.

Colorismo
O colorismo é uma forma de discriminação que pode acontecer entre pessoas de pele negra, mas, assim como o racismo, funciona de forma estrutural na sociedade e está ligado ao processo de miscigenação, criando relações e cenários desiguais, de acordo com o tom da pele. Camila destaca que o colorismo vem sendo debatido agora, entretanto, é um assunto presente dentro das famílias desde sempre. “Entre as crianças, ainda é muito complexo e subjetivo, porque vai além do tom da pele. Costuma-se dizer que temos dois nascimentos: quando nascemos biologicamente e no momento em que nos descobrimos negros no Brasil. […] Hoje, é um conceito muito presente e forte. Tem um efeito profundo na formação de uma pessoa”, diz.

Camila (à esquerda) junto com os colegas do Coletivo Montenegro em Negrito

Fernando relata que vive a situação em casa. “Meus dois filhos são frutos de uma relação inter-racial: negros e alemães. Neste contexto da vivência, os meus filhos são de pele clara e se identificam como negros. Por opção de segmentos, mesmas ideias e causas. Essa identificação depende de nós, é uma questão de escolha”, conta.

Rogério destaca que sua irmã nasceu clara e o médico a registrou como branca. “Naquela época, década de 60, se colocasse como parda ou negra, era uma baita coisa. Existia uma política oficial de separar, branqueamento, não misturar os negros: a eugenia”, fala.

Para Maria Izabel, uma das chaves principais para a mudança está na questão da escola. “Dialogar com as famílias a respeito do colorismo e as pesquisas que existem sobre isso é preciso. A porta da arte como uma passagem importante para todas as reflexões que precisamos fazer”, ressalta.

Camila também reforça a importância da referência para que a criança possa ir se familiarizando com a cor da pele. “Representatividade é servir de referência, lutar, fazer todo este movimento de resgate de uma história, de bater na tecla que precisamos marcar nossa presença; é um fato, estamos aqui. Nossas crianças precisam nos ver, enxergar o legado de pessoas iguais a ela”, completa a professora.

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