Pesquisa mostra que quase metade dos mercados de bairro mantêm esse sistema, que é baseado na relação de confiança entre cliente e comerciante
As pequenas cadernetas são guardadas junto ao caixa do supermercado e, a cada compra, o valor é anotado. O traço sobre os números, feito a caneta, significa que o valor acumulado foi pago, o que possibilita o começo de uma nova lista. A comerciante do bairro Timbaúva, Irene Azeredo, explica que, nesse sistema, há os clientes fixos, que pagam mensalmente, enquanto aqueles que eventualmente compram fiado têm seus débitos anotados em outro caderno.
Um levantamento nacional realizado pela empresa de pesquisa de mercado GfK mostra que a velha caderneta, baseada na relação entre o comerciante e o cliente, ainda sobrevive. Quase metade – 47% – dos pequenos varejistas pratica a venda fiado realizada dessa forma, de maneira informal. O estudo foi divulgado na 38ª Convenção Anual do Canal Indireto, da Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores, considerando mercados de bairros com até quatro caixas. Essa modalidade de venda a prazo com registro em cadernos ocorre em todo o país, mas com maior índice na Região Nordeste, onde 70% dos lojistas utilizam esse sistema.
Irene explica que cerca de 50 clientes têm caderneta individual para anotação das compras. “Eu fico com uma caderneta e o cliente tem a sua”, acrescenta. Desta forma, os valores devidos são anotados em ambas, possibilitando o controle tanto pelo comerciante como pelo consumidor. Irene afirma que não tem problemas com inadimplência. Ela acrescenta que a maioria desses clientes é aposentada. “São pessoas mais velhas e com renda fixa, que pagam certinho”, observa.
Entre os clientes que compram “fiado” há também aqueles eventuais, que não têm o dinheiro na hora, mas pagam mais tarde, nos próximos dias, sem acumular compras ao longo do mês. “Esses ficam anotados em outro caderno”, afirma. Para Irene, esse é um diferencial no estabelecimento em relação a mercados maiores, que não proporcionam a venda a prazo dessa maneira mais fácil e informal. Ela tem o seu estabelecimento desde 2004 e afirma que sempre manteve esse sistema. “Os compradores são pessoas do bairro, a maioria é gente conhecida”, resume a comerciante.
No bairro Cinco de Maio, a proprietária de um mini-mercado, padaria e confeitaria, Rita Rose Wisniewsk, prefere não oferecer a “venda no caderno”. Ela diz que mantém apenas um consumidor nesse sistema, porque é um cliente muito antigo, que já comprava dessa forma há muito tempo, antes dela comprar o ponto, no ano passado.
Rita recorda que, naquela ocasião, havia poucas mercadorias nas prateleiras e precisou investir na aquisição de mais produtos. Para ela, a venda neste sistema antigo, com anotação na caderneta, é inviável e poderia comprometer o investimento. Sua avaliação considera tanto a possibilidade de inadimplência como a inexistência de capital para repor as mercadorias continuamente sem contar com a entrada de dinheiro no ato da venda. Ela acrescenta que tem máquina para possibilitar aos clientes a compra com cartão de crédito, o que acaba facilitando a vida daqueles que não possuem dinheiro em mãos diariamente para levar os mantimentos.
Abordagem humorada
O senso de humor é uma característica dos brasileiros. E esse sistema de compras anotadas na caderneta, para pagar no final do mês ou mesmo no dia seguinte, já inspirou frases cômicas e piadas. Algumas delas para inibir o cliente a pedir para anotar suas compras, outras para, de antemão, avisar que a prática não é reconhecida no estabelecimento.
Confira algumas frases
“Fiado só amamhã”
“Fiado é igual barba, se não cortar, cresce”
“Fiado só para maiores de 90 anos acompanhados dos pais”
“Fiado? Só em dia de feriado, que o boteco está fechado”
“Promoção! Peça fiado e ganhe um não!”
“Fiado? Só na casa da sogra!”
“O tio que vendia fiado saiu”
“Em terra de pobre, quem fez fiado é rei”
“Fiado só a partir de 2099”
“Leve fiado e ganhe de brinde a minha sogra”
“A polícia procura suspeito por ter pedido fiado, então não seja o próximo!”
“Freguês educado não cospe no chão, não pede fiado e não diz palavrão”
“O fiado é muito procurado, mas aqui não será encontrado”
“Fiado só se faz a um bom amigo, e o bom amigo nunca pede fiado”
“Eu tenho vergonha de lhe dizer não, por isso não peça fiado”
“Se vem por bem, entre, esta casa é sua, mas se me pedir fiado, não entre, fique na rua”