Ascensão de militares ao poder deu início a um período de mais de 20 anos sem democracia
No começo desta semana, a informação dada pelo porta-voz da Presidência da República, Otávio Rêgo Barros, de que o presidente Jair Messias Bolsonaro havia determinado que o Ministério da Defesa fizesse as “comemorações devidas com relação ao 31 de março de 1964” e que ele aprovou mensagem a ser lida nos quartéis, acendeu o debate. A afirmativa levou à manifestação contrária ao ato de diversas entidades, como a Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal, e gerou discussões nas redes sociais. Na quinta-feira, o presidente declarou que a mensagem não tinha por objetivo comemorar a data, que completa 55 anos em 2019, mas sim rememorar o fato e identificar seus pontos corretos e errados.
O professor doutor em História do campus avançado Novo Hamburgo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSul), Rodrigo Dias, explica que a data marca o início da marcha do general Olímpio Mourão Filho. Com suas tropas, o militar saiu de Minas Gerais em direção à cidade do Rio de Janeiro, onde estava o então presidente João Goulart, conhecido como Jango.
O ato marcou o início da ascensão dos militares ao poder. “Dizem que o Exército dormiu ‘janguista’, ou seja, pró-Governo, mas como o Jango não reagiu à marcha do general atacando a quebra da hierarquia, o movimento acabou se alastrando no dia seguinte”, observa Rodrigo. Segundo ele, um fato decisivo para a queda do então presidente foi a movimentação das tropas que faziam a sua segurança do Palácio das Laranjeiras para o Palácio da Guanabara, onde estava o então governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda. “Essa passagem das tropas de um lugar para o outro sinalizou a derrota do Governo”, avalia.
Do Rio de Janeiro, Jango vai para Brasília e, da Capital Federal, parte para o Rio Grande do Sul. Em 2 de abril de 1964, o cargo de presidente é declarado vago – apesar de João Goulart ainda estar em território nacional – e, no dia 11 do mesmo mês, ocorre uma eleição indireta na qual é eleito o militar Humberto de Alencar Castello Branco, que assume no dia 13. Dali até 1985, ano da redemocratização, sucederam-se diversos presidentes militares.
Dentro desse período, conforme Rodrigo, aprofundou-se a desigualdade social no Brasil. Além de haver o aumento da dívida externa e da inflação. “Tem uma questão ainda mais grave, que é a da tortura”, ressalta. Durante a ditadura, centenas de brasileiros foram torturados e, segundo identificou a Comissão Nacional da Verdade, 434 pessoas foram mortas naquele período ou seguem desaparecidas. “Ainda existem famílias que simplesmente não sabem, só supõem o que aconteceu com seus familiares”, lembra.
Golpe ou revolução?
O professor doutor Rodrigo Dias aponta que, em 1964, estava em vigência a Constituição Federal de 1946, promulgada logo após o fim da Era Vargas. “Ela é uma constituição democrática. Durante o período de 1946 a 1964 todos os presidentes brasileiros foram eleitos pelo voto popular. É um período democrático”. Segundo ele, o movimento dos militares configurou-se num golpe por violar a Carta Magna em vigência. “Essa Constituição foi rasgada. Os militares passaram por cima dela. Isso configura golpe. As revoluções têm uma base social”, afirma Rodrigo. Ou seja, a revolução parte da sociedade com o objetivo de mudar toda a estrutura do poder, enquanto que um golpe visa apenas a substituição de quem está no comando do país.
Conforme o estudioso, houve uma tentativa, por parte dos militares, de reivindicar essa base social utilizando-se de argumentos da Revolução Francesa. Rodrigo lembra que o período era bastante conturbado tanto em nível nacional – onde havia a oposição entre nacionalistas e quem queria a abertura do mercado –, e também internacional – com a polarização entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Além disso, houve setores da sociedade que se manifestaram a favor dos militares, principalmente após as propostas de reformas feitas por João Goulart à época.
Há ainda a questão de que a iminência de uma tomada do poder por comunistas foi o que motivou a ação dos militares, o que é descartado pelo professor. “Não existiu um plano comunista para tomar o poder do Brasil (na época). O último plano comunista tinha se dado há 30 anos”, observa. Rodrigo refere-se ao movimento liderado por Luís Carlos Prestes em 1935, a Intentona Comunista. Ele observa, ainda, que a luta armada por parte de opositores do regime militar em forma de guerrilhas se deu como uma resposta às violações de direitos ocorridos na época.
“Nós tínhamos que pegar e ficar encolhidos”, relembra Clóvis
Em 1964, Clóvis Moacir Domingues, o Cafundó, tinha 15 anos. Foi principalmente pelo rádio que ele, e boa parte da comunidade montenegrina na época, ficaram sabendo da movimentação militar que acabou por destituir João Goulart do poder. Segundo Cafundó, o efeito dessa tomada de poder não foi sentido logo de início. “Entrou o Castello Branco e começou a desenvolver o governo dele. O que se sentiu foi o posterior, porque se viu que a democracia foi ferida. Realmente muito ferida”, observa. Clóvis recorda que o golpe se deu dias após comício realizado por João Goulart, em 13 de março de 1964, onde ele anunciou a intenção de realizar diversas reformas.
De família com histórico trabalhista, Cafundó observou os militares se perpetuarem no poder através da criação de mecanismos políticos. Ele cita como exemplo o Ato Institucional Número Cinco, o AI-5. Tal ato, entre outros pontos, deu ao presidente o direito de suspender o direito político de cidadãos considerados subversivos e de fechar o Congresso Nacional. Para o militante, incomodou a tentativa que os militares tiveram de se perpetuar no poder. “Sem uma eleição e sem a anuência de quem deve ter, que é a do povo brasileiro. Errado ou certo, o povo é quem tem que escolher”, defende.
Em Montenegro, nos anos que se seguiram, Clóvis entende que ocorreu numa escala menor o que ocorria em Brasília. “A Arena era um segmento muito forte, que dominava a política local”, afirma. Segundo ele, quando vereadores da oposição se elegiam, havia medo de se manifestar porque existia a possibilidade de ter seu mandato cassado rapidamente. “Nós tínhamos que pegar e ficar encolhidos, totalmente cuidadosos”, coloca.
Cafundó recorda que alguns moradores de Montenegro, principalmente ferroviários, acabaram sendo levados por forças militares para interrogatório em Porto Alegre sob a acusação de serem comunistas. “Se viu o quanto o povo tinha medo. Medo, a palavra era medo! A gente falava algumas coisas, mas se tinha muito cuidado”, observa. Ele recorda ainda que durante um comício das Diretas Já, realizado na época da redemocratização do País, na Praça Rui Barbosa foram pouco os que participaram.
“Quem será que é lembrado com mais saudade?”, pergunta coronel
Enquanto as Forças Armadas se movimentavam para tomar o poder, o montenegrino Marcus Paulo Beck focava-se no curso da Academia Militar da Brigada (BM). Hoje coronel da reserva da BM, ele tinha 15 anos quando João Goulart foi destituído em prol dos militares. Dentro da academia, ele lembra que o sentimento foi ambíguo, muito em razão da Campanha da Legalidade ocorrida anos antes. “Alguns companheiros da Brigada ficaram numa dúvida: o que é legalidade agora e o que não é legalidade? É um golpe? Não é um golpe? É uma revolução? É uma tomada de poder?”, conta.
De acordo com Beck, a ascensão dos militares não foi unanimidade entre cadetes e oficiais da Brigada Militar. Alguns acabaram perseguidos. Logo após, o montenegrino fez parte do Batalhão Volante, agrupamento móvel criado com o objetivo de procurar integrantes do “Grupo dos 11”, suposto bando paramilitar comandado por Leonel Brizola. No entanto, eles mais auxiliavam as comunidades por onde passavam do que efetivamente encontravam ameaças de guerrilheiros. “A nossa atividade na revolução foi muito mais cultural do que qualquer outra, embora, originariamente, a ideia seria procurar os tais grupos de 11 e as armas que eles tinham”, comenta. Segundo Beck, os médicos que acompanhavam o batalhão atendiam as pessoas e os brigadianos realizavam palestras nas comunidades.
Para o coronel, a guinada de rumo pela atuação dos militares no comando do Brasil possibilitou amplo desenvolvimento do País. “O Brasil dava para o mundo exemplo de crescimento. As Forças Armadas eram respeitadas internacionalmente e a política externa do Brasil era respeitada”, diz. Beck afirma que João Goulart mostrava aproximação com o comunismo e que a ação militar foi legitimada pela participação de diversas autoridades civis, principalmente políticos. “Porque uma revolução? Porque revolucionou o que estava acontecendo e redirecionou o Brasil para outros rumos”, afirma.
Beck lamenta os rumos que o Brasil tomou após a redemocratização. “Quem será que é lembrado com mais saudade? O general Figueiredo, que já faleceu, ou o Sarney que ainda está conosco?”, questiona.