Entenda porquê a superlotação das UTI’S durante a pandemia é tão grave

Mesmo com a criação de vagas, profissionais relatam que mão de obra poderá faltar

O Rio Grande do Sul bateu o recorde de superlotação das Unidades de Terapia Intensiva (UTI’s) nesta quinta-feira, 4. Segundo os dados disponibilizados pela Secretaria Estadual de Saúde (SES), de 2.970 leitos de UTI (entre SUS e privado), 3.012 precisavam do atendimento. Desde o início da pandemia, o Estado não havia registrado números tão altos de pacientes graves esperando por um leito. Em Montenegro, a taxa de ocupação até o final da tarde era de 107%, ou seja, de 26 vagas havia 28 pessoas necessitando dos leitos.

A rede hospitalar pública do Estado mais do que dobrou a capacidade do atendimento da UTI desde o início da pandemia. Para fins comparativos, no início do ano passado eram 933 leitos em UTI, no dia 10 de julho havia 1.630 leitos, no dia 7 de dezembro já eram 1.884 vagas em UTI, e nesta quinta-feira, 4, o RS já contava com 2.249. Esse é um aumento de 141% no número de leitos. “Ainda vamos continuar abrindo mais leitos de UTI. […] O governo do Estado fez seu papel e mais do que dobrou a capacidade da rede de UTI SUS, e agora espera-se uma maior participação do setor privado e de seus conveniados no atendimento de seus pacientes”, explica a secretária da Saúde, Arita Bergmann.

Com 10 leitos de UTI para atendimento ao público em geral, o Hospital Montenegro abriu seis novos leitos em julho de 2020 especialmente para o tratamento de casos graves a Covid-19. Além disso, o Hospital Unimed Vale do Caí disponibilizou nesta quinta, mais um leito de UTI, totalizando 10 vagas para os seus associados. “Este leito foi criado como contingência para atendimento ao atual surto da Covid-19 e vem em momento oportuno para diminuir a taxa de ocupação da UTI (89% no momento)”, diz o Diretor Técnico do HUVC, Dr. Cacio Wietzycoski.

Mas porque apesar da criação de novos leitos, o momento é tão grave? Segundo a secretária de Saúde de Montenegro, Cristina Reinheimer, enfermeira há 27 anos, diferente do que se viveu no surto da H1N1 em 2010 – em que os hospitais também estavam cheios – a disseminação do novo coronavírus é altíssima. “Não está dando tempo de desafogar os leitos; está ocorrendo espera. […] A fila na Tenda Covid está enorme, a gente está com três médicos atendendo. Tem médicos prescrevendo o tratamento precoce e estamos para adquirir mais testes. A coisa está muito complicada, e acredita-se que a tendência é piorar, porque agora estão vindo os resquícios do carnaval”, explica Cristina. De acordo com a secretária, a faixa etária dos positivados com a Covid-19 hoje é diferente do período inicial da pandemia, sendo que grande parte dos internados tem entre 40 e 55 anos.

Profissionais da saúde esgotados
Há um ano na linha de frente do combate ao novo coronavírus, os profissionais da saúde lidam diariamente com os casos mais brandos, mas também os mais graves da doença. Para a secretária de Saúde, Cristina Reinheimer, não adianta criar leitos, pois hoje o que está faltando é a mão de obra. “As pessoas que tem já estão cansadas, e cansada a tua imunidade baixa e a tua imunidade baixando tu corre maior risco de se infectar também”, relata.

Em live, no final da tarde de segunda-feira, o governador Eduardo Leite também descreveu preocupação quanto ao assunto. “Não há capacidade de expansão do sistema hospitalar na mesma velocidade que o vírus se propaga, e por isso o distanciamento se impõe”, fala.

Há um ano lutando contra o vírus, profissionais de saúde da linha de frente relatam esgotamento. Foto: Arquivo Ibiá

Diretor do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers), Rogério Gottert Cardoso, explica que para a equipe de saúde os casos graves da UTI acabam sobrecarregando o emocional. “É um trabalho penoso, e na medida que ele está sendo feito nesse volume e nessa intensidade, as pessoas vão sofrendo. A linha de frente vai sofrendo e adoecendo também. Muitos adoecendo de Covid, porque estão expostos, e muitos adoecem física e mentalmente”, diz.

Além disso, ele também ressalta os relatos de médicos que às vezes ficam cerca de três dias nos hospitais, sobrecarregados com esses casos. “Isso acaba contribuído para uma diminuição de qualidade do atendimento, porque se eu estou alimentado, tranquilo, vou render muito melhor, vou ter mais rapidez do que se eu tiver dois/três dias de plantão permanente”, comenta o médico.

O presidente do Sindicato dos Profissionais de Enfermagem, Técnicos, Duchistas, Massagistas e Empregados em Hospitais e Casas de Saúde no Estado (Sindisaúde/RS), Júlio César Jesien, também tem recebido depoimentos de profissionais que estão esgotados e com medo neste momento. “Agora quando se está precisando cada vez mais de leitos de UTI, o número de profissionais habilitados para tratar com os equipamentos está em falta”, comenta.

Segundo ele, quando um gestor fala que irá aumentar os leitos de UTI, o primeiro questionamento é quem serão os profissionais que vão operar esses espaços. “Hoje não há profissional, por mais que se queira abrir leito, por mais que tenha equipamento, não se tem profissional”, diz Jesien. Ele ainda relembra que grande parte dos enfermeiros e técnicos trabalham em mais de um hospital, e quando adoecem acabam faltando em mais locais.

Para o Sindisaúde/RS a melhor proposta para recuar a Covid-19 é fazendo lockdown por 15 dias, disponibilizando vacinas e mais testes a população. “A nossa proposta é definitivamente fazer um lockdown, onde só sai pra rua os profissionais de segurança, porque se não fizer isso, a gente vai ver essa ampliação de pessoas contaminando e ampliação de pessoas indo a óbito”, declara. “A questão é: fica em casa, usa máscara, te protege, faz o distanciamento. É só isso que vai salvar”, completa.

Número de leitos ocupados em UTI disparou
Em apenas doze dias o número de pessoas confirmadas com a doença em UTI no Rio Grande do Sul quase que dobrou, passando de 1.088 para 2.012. Em maio de 2020, eram somente 68 confirmados e 66 suspeitos em leitos de UTI, o que em apenas 1 mês quase quadriplicou. Enquanto em julho de 2020 havia 1.630 leitos disponíveis, eram somente 631 confirmados e 205 suspeitos em leitos de UTI, sobrando assim 794 leitos. Agora, em março de 2021, após a expansão realizada no Estado, há 2.249 leitos e 2.185 pacientes (entre confirmados e suspeitos), ou seja, sobram somente 64 leitos SUS para todos os 497 municípios.

Na relação de leitos livres para ocupados na UTI, o Estado passou de 2,13 para -0,01 nessa quarta-feira, 3. Em 9 de dezembro essa métrica era 0,44, e em menos de três meses o número negativou.

Já a ocupação de leitos de UTI por Macrorregião, nos últimos 30 dias, demonstra que passamos de 76,12% de ocupação no dia 3 de fevereiro, para 101,44% nessa quarta. Foram 33,26% a mais em apenas um mês. Em uma semana, a Macrorregião Metropolitana, na qual Montenegro se enquadra, passou de 92,15% para 101,44%.

No momento, tanto Montenegro, como a Macrorregião ou o Estado, possuem mais pacientes do que leitos disponíveis em UTI. Caso alguém tenha um infarto ou AVC, não terá leitos disponíveis para essa pessoa ser cuidada, pois o aumento de casos da Covid-19 no Rio Grande do Sul está causando uma superlotação nos hospitais, e as consequências são inimagináveis.
*Todos os dados foram captados até as 16h10min dessa quinta-feira, 4.

Nas trincheiras

Recentemente comecei a ler um livro que compartilha cartas trocadas entre combatentes e sociedade civil (familiares/amigos) durante diversas guerras pelo mundo. Lendo esses relatos consegui compreender um pouco da dimensão da guerra na vida dessas pessoas. Mas é claro, nunca terei o total discernimento do que realmente foi.

Nessa terça-feira, 2, o Jornal Ibiá divulgou uma reportagem sobre o esgotamento das UTI’s no Estado e em Montenegro. Para isso, na segunda-feira, eu e um colega estivemos no Hospital Montenegro 100% SUS. Em questão de uma ou duas horas posso dizer que vivenciei algo parecido com as guerras.

Lá nas trincheiras do Hospital, enfermeiros, técnicos, médicos, profissionais da limpeza e muitos outros dão a sua vida para ganhar essa luta contra o inimigo. Com adaptações para receber mais pessoas, salas se transformaram em leitos de UTI Covid, e profissionais viraram psicólogos, amigos e até familiares.

Andando pelos corredores foi visível perceber o olhar cansado, o esgotamento e pressão que esses profissionais estão neste momento. E é compreensível. Ver e cuidar diariamente de pessoas em estado grave, lutando pela própria vida cansa, é estressante e triste. Ao passar pela UTI também vi pessoas em estado grave, entubadas, desacordadas e sozinhas. Vivenciar um momento desses isolado é desumano, e é isso que a Covid-19 faz.

Ao parar na entrada da porta da UTI bati o olho em uma senhora que estava com os olhos fechados e respirando por aparelhos. Naquele momento me lembrei da minha avó e tive de segurar a emoção. Imaginar um familiar nessas condições causa um turbilhão de sentimentos. É tristeza, revolta, dor e muitos outros. É pensar que um simples “encontro” entre amigos pode causar a dor e até o falecimento de alguém.

Há um ano trabalhando para salvar vidas, o semblante dos profissionais é mais abatido, apático. Porém, sempre que questionados se estavam cansados a resposta dada a mim era a mesma: a luta tem que continuar. Mesmo exauridos, eles continuam com o sorriso no rosto para atender a dona Maria, o seu José, e muitos outros que ainda passarão por lá.
Quando todos serão vacinados e o vírus diminuirá eu não sei, mas uma coisa tenho certeza: mais do que bater panelas ou fazer textos dando o parabéns para essas pessoas, é necessário cada um fazer a sua parte e se cuidar. A luta não pode parar!

Relato pessoal – Marielle Gautério, jornalista

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