Os finais de ano costumavam ter trilha sonora e gente feliz se abraçando. Não víamos estas coisas de muito perto. Era pelo tubo em preto-e-branco, primeiro, e de um colorido esmaecido das televisões antigas, depois. Os novembros se aproximavam do fim, o calor se pronunciava inclemente, as últimas provas da escola nos deixavam nervosos, a recuperação para os alunos que não se empenharam como penitência, e a indefectível peça de fim de ano da rede Globo mostrando artistas incontidamente felizes a se abraçarem, abraços fraternos só imagináveis na “brotherhoodofman” da utópica canção “Imagine”de John Lennon. Era chegado mais um final de ano.
“Hoje é um novo dia
De um novo tempo que começou
Nesses novos dias, as alegrias serão de todos
É só querer”
A musiquinha se entranhava nas mentes e se tornou o hino oficial das festas natalinas e dos réveillons, os mais heterogênios, como aqueles regados a champanhe e outros a sidra ordinária. A Globo sempre conseguiu fazer ricos e pobres sonharem um mesmo sonho, mas com o cuidado de mantê-los em segura distância uns do outros. Um sonho legítimo de igualdade, de esperança, de fraternidade, mas tão quimérico que a realidade teimava em desconstruí-lo, não raramenete ainda durante as festas.
Ouvir o tema de fim de ano da rede Globo nos arrebatava da realidade. Era como se, sim, um novo tempo começasse. Para os outros, nunca para nós. Porque a vida teimava em ser a mesma, com as dificuldades de sempre, com as angústias companheiras, existenciais, a comprimirem o peito dos que sabem do efeito meramente psicológico dos placebos.
Quando a Ciência médica e a psicológica se debruçam sobre a depressão de fim de ano para entendê-la e tratá-la, medicamentosa ou psicoterapicamente, é por que não se trata de casos isolados e pontuais. É comum colocarmos todas as nossas expectivas neste período do ano. E, ao percebermos a completa incapacidade que o calendário tem de mudar as coisas, ataca-nos a percepção de que não é “só querer” como diz a letra da musiquinha de Marcos Vale. Precisamos trabalhar para mudar o status quo.
Sem dúvida, uma das causas de cairmos em depressão é o fato de nos compararmos com os outros e nos parecer que todos estão em melhores condições físicas, financeiras, psicológicas ou espirituais. Como no videoclipe global. Artistas famosos, felizes, realizados, portadores de sinais exteriores de beleza e riqueza, comemoram um novo tempo que manterá a escalada favorável que a vida já lhes oferece. E nós, do lado de fora da cerca, a lhes assistir se esbaldarem com a sorte com que a vida lhes trata.
As trilhas sonoras e os vídeos de hoje são outros. São funks e sertanejos a embalarem selfies bem produzidas e publicadas em stories e feeds. São os novos tempos preconizados. Não precisamos mais da peça institucional da Globo para nos deprimirmos.
Agora, podemos provocar depressão, exibindo-nos orgasticamente felizes em ambientes quase lisérgicos de tão inimagináveis, durante as festas de fim de ano. E vamo-nos baixar até o chão, deprimidos com as festas dos outros, sempre melhores e mais completas do que a nossa.
Hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier. Mas, para a mantença de uma boa saúde mental, não é conveniente stalkearas redes sociais de ninguém neste fim de ano. São sempre mais felizes do que nós.