Ser ou pertencer

Está cada vez mais complicado o pensamento autônomo neste tempo de estertores do velho normal. As doutrinas vêm em pacotes fechados. E os pacotes vêm etiquetados para que ninguém os tome inadvertidamente.

Há protocolos de direita, de centro e de esquerda. De capitalistas e de socialistas. De colorados e de gremistas. E quem tenta se arranjar alegando pensar por conta própria, é arrojado ao ostracisimo que cabe aos ignorantes. Não se encaixa em nada.

A dita opinião própria, autóctone, nascida de nossos próprios torvelinhos mentais, de nossas cogitações mais íntimas, essa opinião, já não tem mais onde assentar-se. Ou nos associamos a um discurso já petrificado e nos esmeramos ao reproduzi-lo, emulando inédito processo mental, ou não tomaremos banco entre os pensadores.

Circula um vídeo pela rede mundial em que um aluno universitário americano expõe sua opinião a um palestrante, contestando-o. Fala de privilégios e de como se deve indenizar algumas etnias pelo mal que o homem branco, primazista, imperialista e capitalista, lhes impôs ao longo da história.
Bem articulado, o moço poderia ser aquilo que nossos avós chamariam de guri inteligente. Mas, não. Ele mimetiza um discurso prontinho. Não se deteve a pensar. Acha que toda a verdade é aquela. Os meninos são bons. E meninos simplificam as coisas.

O palestrante, frio, não teve compaixão. Reduziu a nanopartículas a tese do rapazote. Demonstrou-lhe a hipocrisia do seu discurso. Estudar naquela universidade é privilégio de ricos. O carro, os eletrônicos, a casa onde vive, tudo, é privilégio que os mais pobres não têm. Não se dispõe o meninote a ser, ele mesmo, o primeiro a se desapegar dos privilégios que não são dados a outras classes. O discurso não lhe é afeto.

Diametralmente, há os que discorrem suas opiniões ditas conservadoras, ou de direita. Para esses, a ausência do Estado regulador, a meritocracia radical, o cada-um-por-si, são valores pelos quais vale uma boa peleja. Mesmo que a economia liberal, aquela que não tolera justamente o paternalismo, atente contra seus direitos sociais e trabalhistas. Para esse grupo, tudo o que não é isso, é o mal.

Quando alguém experimenta pensar fora das linhas que delimitam o campo de jogo, é posto sob suspeição. E, aqui, a dúvida nunca beneficia o réu. Ninguém pode viver sem se posicionar. E posicionar-se significa, invariavelmente, colocar-se nos extremos. Ou nos enquadramos entre os fascistas, ou entre os comunistas. Ou entre crentes, ou entre incréus. Ou defendemos os privilégios de castas, ou somos esquerdopatas. Ou machistas, ou feministas.

Não temos a prerrogativa de, a partir da cogitação e da excogitação próprias, construirmos nosso ideário, nossa cosmogonia e teogonia. Tudo vem pronto. Tudo vem em kits.

A necessidade de pertencimento a um grupo, em Maslow, pode explicar parte do problema. Aderimos a um ou outro grupo por que somos seres sociais. Nossa autoestima melhora quando somos queridos em um grupo. Clubes, igrejas, partidos políticos, às vezes, são escolhidos como por contrato de adesão, em que as cláusulas dispostas em letras miúdas não importam muito. Passamos a reproduzir os valores do grupo, aparentemente tão verdadeiros que não nos aprofundamos no credo, na confissão de fé da respectiva associação. E, então, sentindo-nos seguros como gnus em manada, passamos a combater o outro, ou grupos de outros.

Não há lugar para semitons, para o gris. Tudo é preto ou branco. Tudo é definitivo. Não há espaço para os que pensam fora da caixinha.

E pensar fora da caixinha, geralmente, é só pensar.

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