Quando a chuva passar

Quando passar a chuva e os dias se iluminem pelo sol franco e desimpedido, voltarei às ruas. Não serão as mesmas ruas, sei.

As cidades são formadas por ruas, avenidas, becos,vielas, e todas têm histórias a contar – e contam – de gente que as povoaram, de vidas construídas em suas calçadas e pátios, de suas árvores, seus pavimentos. Há sempre uma rua principal, mas as ruelas calmas e discretas são as que guardam a alma das cidades. Ruazinhas são ladeadas de casas e, dentro das casas, as pessoas que dão vida e cores às ruas. As ruas tomam o caráter a seus moradores. Quando nos referimos aos habitantes de certa rua, podemos generalizar como “toda a rua”. Tomamos os moradores pela própria rua.

Outro dia, experimentando asfalto novo, atravessei os bairros Santo Antônio e Panaroma. Atravessei em rota perpendicular várias ruas, que são os mundinhos de tantas famílias, pelas quais nunca transitei. Outras tantas haverá, disse-me.

Mas, há aquelas ruas que conhecemos muito bem– em algum tempo – por termos ali resididos ou por que ali moravam nossos circunstantes infanto-juvenis. Algumas vezes, quando de balde, volto a essas ruazinhas para, em trânsito, reviver flashes de memórias já esmaecidas. As coordenadas geográficas são as mesmas, mas nem tudo permaneceu.

Casas mais antigas esmorecem entre novas edificações. Não se encontram mais as personagens descartadas pelo inexorável tratamento que nos dispensa o tempo.

Que diabos fui fazer na rua Santa Terezinha, alguma vez? Ora, ali morou o Vilson Gonçalves Diniz Júnior, quando estudávamos no Ginásio Industrial. E na Espírito Santo? Sim, ali moraram o João e o Negrinho. Próspero Mottim? Não lembro se alguém dos meus residiu ali, mas na esquina está a escola Álvaro de Moraes, próxima da Escola Integrada onde estudava, e tínhamos momentos de interação. Não havia ruas na Olaria, mas varávamos os campos para as artes infantis de mergulhar nas barreiras da fábrica de telhas e tijolos. Na Independência, acho que morava o Paulinho Pepê que era amigo do Vilson. Mais tarde, minha própria família alugou casa nesta rua, quase esquina com a Osvaldo Aranha. Na Osvaldo, mesmo, que servia de acesso a tantas ruazinhas, especialmente da Estação ao campo da Brigada, quanta gente de nosso convívio! E a rua Castro Alves, como a conheci? Lá no final, quase 15 de Novembro, iámos como time convidado jogar bola no CACA, Clube Atlético Castro Alves, timezinho com a megalomania sonhadora infantil, que mandava seus jogos no campinho do pátio da família patrocinadora. Otelo Rosa dos Taquarais do Montenegro Futebol Clube, cujo muro saltávamos para bater bola em um dos melhores gramados do Estado. Menino Deus, São João, Olavo Bilac, Vila Sapo. Tantas outras ruas do outro lado da cidade. Ruas exaustivamente exploradas pelas atividades vagamundas da gurizada. Outras, tão fora dos itinerários comuns que os quase únicos passantes são os que nelas moram.

Quando passar a chuva e o sol bater na janela do meu quarto, sairei a essas ruas, talvez pela última vez. Não serão as mesmas ruas, sei. Agora, ali moram os destroços, os muros ruídos, janelas e portas desrespeitadas, marcas de água barrenta nas paredes novas e antigas. Os remanescentes ancestrais e os descendentes de antigos moradores se preparando, não para o retorno, mas para a mudança definitiva das ruas das suas vidas.

E, um dia, se os governos se importarem, ali não haverá mais casas nem ruas. O novo normal climático é imperativo em seus desígnios. Eu não poderei mais visitar as ruazinhas onde enchentes iam e vinham, molhavam pés, mas nunca destruíam tantas histórias.

Últimas Notícias

Destaques