Vêm-me à memória os domingos naquela quadra da vida em que não se pagavam boletos e o único sofrimento era saber que os domingos sempre acabam. Não havia dias úteis em nossa memória até os primeiros acordes televisivos daquela abertura daquele programa: “Olhe bem, preste atenção / Nada na mão, nesta também / Nós temos mágicas para fazer / Assim é a vida, olhe pra ver /… É fantástico… Pronto. Era o aviso de que a segunda-feira se estendia suas garras para nos alcançar.
Os domingos, geralmente, eram dedicados a imemoráveis formas de lazer como jogar bola nos campinhos que então havia, ou assistir-se ao programa Sílvio Santos, espremidos entre os coroas em um sofá, por absoluta falta de uma segunda tela. Os domingos davam-se assim, mineiramente preguiçosos.
Contudo, havia domingos extraordinários.
O José Fogaça diz que Porto Alegre é demais e enumera as razões para a hipérbole sentimentalista. Uma delas é poder “passear num alto astral pelo brique (da Redenção) em uma manhã de domingo, esperando o grenal”. Fogaça errou. O grenal é que é demais. O grenal é capaz de ativar gatilhos mentais que nos fazem lembrar de infâncias felizes. Para alguns, entretanto, esses gatilhos podem despertar o homo troglodytes malcriado, colérico e hidrófobo que coabita nossa pele com o pacato e civilizado cidadão que somos.
Quando guris, nós intuíamos o que agora sabemos se tratar de polarização. Se antes de 1909 maragatos e chimangos habitavam a pampa, agora, gremistas e colorados.
As salas de aula se dividiam entre azuis e encarnados. Terminar um fim de semana com vitória em grenal significava termos uma semana para “se deitar” nos torcedores contrários. (Atenção, muita atenção: gaúcho raiz não “zoa” ninguém; se “deita na cabeça”). Vitória em grenal atenua o peso da semana entrante. Com a mesma intensidade que vencedores de grenal entram em transe extático, vencidos se deprimem. Nem os domingos em que Grêmio e Inter decidiram campeonatos nacionais tiveram a mesma emoção que um grenalzinho pelo Gauchão.
Nenhum domingo é igual a um domingo de grenal, mas sempre houve eventos capazes de nos tirarem da serenidade do dia de descanso. Uma festa religiosa, um circo ordinário. Eleições.
No Brasil, tradicionalmente, as eleições se dão em dia em que a sacrossanta indolência dominical se queda violada. Em outras eras, a cidade se agitava, os santinhos com as efígies dos candidatos conspurcavam as calçadas e sarjetas, mas o máximo das provocações eram frases do tipo “vota com o bila e não cochila” [vota com o (Ivo) Bühler e não com o (Adolfo) Schüller]. Era uma grenalização do tipo Joãozinho versus Sérgio Galocha.
Hoje, como um grenal do século, a política está polarizada. Gatilhos mentais são acionados e podem despertar o homo troglodytes malcriado, colérico e hidrófobo que coabita nossa pele com o pacato e civilizado cidadão que somos. A política não deveria ser como os grenais em que a racionalidade é eclipsada pela paixão ideológica ou meramente casuística.
O próximo domingo não será um dia comum como aqueles em que assistir Sílvio Santos ou Faustão eram as únicas atrações. Será um domingo de cumprimento fatual da Democracia, regimezinho aquele que dá lugar ao povo acima do Estado, e não adianta ficar na torcida.
É preciso jogar o jogo. Sem entradas por cima da bola.