Os invernos de antes

Tenho lembranças de invernos longos e rigorosos. Não sei, exatamente, se os dias de infância correm mais lentamente e as sensações são mais intensas naquela fase da vida, ou se, de fato, o tempo – o clima – mudou entre minha meninice e madurez.

Os dias e as noites de frios intermináveis prendiam-nos em casa e, de fora, se faziam ouvir os ruídos da estação: o uivo sibilante do minuano e as quedas barulhentas dos objetos esquecidos na rua, soprados pelo mítico vento dos gaúchos. Dentro de casa, o aconchego da ninhada era garantido pelo tamponamento das frestas de portas e janelas. Os que se aventuravam a sair para a rua, por necessidade ou curiosidade, protegiam-se do açoite da cortante aragem com aquilo que possuíam. O avô usava um pesado capote. Lembram-se do que seja um “capote”?

Aqueles dias gelados demoravam uma estação inteira e se chamavam inverno.
Depois, tudo mudou. Podem ser só filtros em olhos adultos, tentando nos convencer que o melhor está no passado, podem ser de fato as mudanças climáticas, mas o inverno nunca mais voltou. Faz alguns dias mais frios, frentes frias se revezam com ondas de calor, mas não se usam mais capotes.

O clima sempre provocou o desenvolvimento de teorias, algumas que se provaram verdadeiras, outras que foram relegadas ao opróbrio. O efeito estufa, fenômeno de aquecimento global a partir da atividade humana, pode estar por trás do desaparecimento dos invernos da minha infância. Esta teoria, parece-me, se manterá em voga por muito tempo, pois não viveremos o bastante para vê-la cumprir-se. Não estaremos na audiência do apocalipse, quero dizer.

A teoria do determinismo geográfico, entretanto, já no século 20 começou a ser desmistificada. Grosso modo, a teoria justifica o desenvolvimento econômico, social e tecnológico dos povos que vivem sob clima adverso, entenda-se frio, que necessitariam de grandes esforçose trabalho árduo para sobreviverem imersos em uma natureza inóspita. De modo oposto, os viventes dos climas equatorial e tropical não precisariam dispender a menor queima de energia para lançarem mãos dos frutos da exuberante natureza que os rodeiam. Colher, flechar, comer, descansar à sombra de um flamboyant. Um vidão!

A chamada indolência dos povos tropicais não lhes permitem pensar o futuro e desenvolver tecnologia. Basta a cada dia as bagas suculentas e carnosas que pendem das árvores ou os porcos-do-mato que se oferecem às flechas dos nativos. E este não é um pensamento que pudesse provocar desinteligência entre esquerda e direita. Marx e Hitler comungavam da ideia, cada um a seu tempo, e trataram de justificá-la comparando a evidente maior riqueza dos povos de clima frio com a inapetência dos povos de clima quente pelo trabalho árduo, seja braçal ou intelectual. O racismo e o colonialismo estão legitimados.
Pois, os serviços de meteorologia estão anunciando uma baita friaca para os próximos dias nos estados do sul. Temperaturas abaixo de zero grau por um período mais longo que o normal das frentes frias. Estou, digamos assim, excitado.

Sei, contudo, que meu gozo não pode ser maior do que a consciência de que haverá gente enroscando-se uns com os outros para mitigar o frio implacável que entra pelas frestas dos casebres.

Meus invernos de criança são boas recordações por que memórias afetivas. Como escreveu o romancista Franz Hellens, “a infância não é uma lembrança. É o mais vivo dos tesouros e continua a nos enriquecer sem que o saibamos.”

No entanto, eu sei.

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