O cronista mineiro Fernando Sabino (1923-2004), em entrevista a um jornal, abordou a importância da literatura e – mais – da leitura, e de como um bom texto pode, às vezes, mudar circunstâncias.
Referia-se o genial escritor a um determinado texto seu em que narra um prosaico dia de faxina em seu apartamento.
A diarista, humilde e de baixa escolaridade, mas de um interesse singular por palavras que lhe pareciam “bonitas”, via-se às voltas com o gato da casa, enquanto tentava cumprir sua diária. O bichano trepava em tudo e enrolava-se nos fios e nas pernas da mulher. Após múltiplas tentativas de dissuadir o bichano de lhe atrapalhar as tarefas, saiu-se com uma impagável exclamação que arrancou Sabino da página de jornal que lia:
– Chispa, bicho! Que gato mais externo!
No dia da publicação da crônica que contava o caso, em algum ponto do Rio de Janeiro, um casal enfrentava os traumas de uma separação. O marido à porta, malas feitas, lia o jornal enquanto aguardava o porteiro do prédio anunciar-lhe a chegada do táxi que o levaria para o exílio de um casamento acabado. A mulher, sentada com parte da bunda na ponta do sofá, olhava para lugar nenhum, talvez pesarosa pela quebra do juramento de que só a morte os pudesse separar, talvez ruminando sobre a inevitabilidade do fim de tudo que parecia ser para sempre.
De repente, o homem desaba em risos frouxos e honestos, daqueles que arcam a coluna vertebral e fazem doer o abdome. Risadas que quebram a indiferença de um dia funesto, como são os dias de adeus. A mulher, sem entender o que faria rir um quase ex-marido, irritada, pergunta:
– De quê ris? Por acaso estás feliz?
O homem, sem poder segurar aquelas lágrimas produzidas pela constrição dos músculos do riso que espremem as glândulas lacrimais, passando-lhe o jornal diz:
– Lê isso! Lê a crônica do Sabino.
– Chispa, bicho! Que gato mais externo!
A mulher cai em terapêutica crise de riso. Gargalha como o marido. Olham-se com os olhos apertados e quase cegados pelo marejamento involuntário, abraçam-se apertada e demoradamente, aquele abraço energético que dispensa a DR. Que gato mais externo! Sentem-se tão à vontade rindo um com o outro que, sem dizer palavra, percebem que não há mágoas que não possam ser tratadas por quem ri juntos. O táxi foi dispensado.
Sabino se sentia recompensado pelo fato de suas crônicas surtirem efeitos variados em seus leitores. O salvamento de um casamento lhe era paga suficiente por toda a produtiva carreira, despeitando o grande reconhecimento de que sempre desfrutou pela crítica e público.
Quanto àquela diarista de poucas letras e de vocabulário rebuscado, se ela soubesse que os gatos não são somente externos! Os gatos, às vezes, são conspícuos e noutras, sorrelfos. Quem tem gatos, sabe.