O Gaúcho Resiliente

As ciências humanas – e pseudociências – buscam, muitas vezes, em outras áreas do conhecimento a forma de melhor expressar suas proposições. Assim, foram buscar na Física uma definição que já se tornou clichê em razão do uso descontrolado por influenciadores digitais, RH de empresas, coachs, e público em geral.

Resiliência é a propriedade intrínsica de alguns materiais de recuperarem a forma original, retirada a ação de uma força de deformação que atuava sobre eles. Como uma mola de aço, por exemplo. Esticada ao limite, quando relaxada a força que a distende, volta à forma original como se nada a tivesse perturbado.

Quando a Psicologia necessitou explicar que as pressões que sofremos na vida diária são inevitáveis, mas que há formas de sairmos delas sem avarias permanentes, abeberou-se da Física para, por analogia, tomar para si a definição. O curioso é que muito poucos saberão que resiliência é, primeiramente, uma propriedade físico-mecânica de materiais, mas saberão de suas próprias necessidades de resiliência ante o aperto que sofrem das mais variadas fontes, como da carreira, das relações sociais e familiares, por exemplos, por que o termo em sua acepção psicológicase tornou “da hora”.

Assim que, em tempos de tragédia climática traduzida em enchentes diluvianas, surgida – como Moisés – das águas, a invocação à resiliência do povo gaúcho se tornou um mantra em boca de jornalistas, comentaristas, podcasters, apresentadores, comunicadores e, por vias de consequência, do povo em geral. O gaúcho é então, além de forte, aguerrido e bravo, dono de uma virtude mais: é resiliente. O que não deixa de ser uma façanha.

Diante do limitado alcance dos Poderes Públicos, desorientados pelo inédito da situação, pessoas comuns se lançaram ao socorro e salvamento de outros, sem se importarem se elas mesmas haviam sido expulsas de suas casas pela água impiedosamente invasora. Em horas – não mais que horas – um furacão de solidariedade, maior do que o desastre hidrológico próprio, tomou o Estado. O brio dos gaúchos estava posto em desafio e, “se não podemo se entregar pros homi de jeito nenhum”, não seria para uma aguada dessas que vamos nos mixar. Gaúcho está acostumado a nadar de poncho contra a correnteza. Em todo o Estado foi igual. Cidadãos comuns formaram correntes de apoio físico e emocional.

Gente se entregando pelas gentes desprotegidas, desabrigadas, isoladas, famintas, sedentas, insones. Gente que se entregou aos riscos de saúde, dentro d’água, para retirar da água os hipossuficientes. Gente e gente. Anônimos flagelados, anônimos salvadores. Chamou-se de resiliência gaúcha a forma como reagimos à tragédia.

Não demorou a que elegêssemos o símbolo da resiliência gaúcha:um cavalo, o Caramelo. Por inusitado, um cavalo em cima de um telhado desperta curiosidade. Um cavalo em cima de um telhado por dias, ilhado por águas intrusas, provoca comoção pela impossibilidade de autossalvamento. E os gaúchos resilientes se impuseram a tarefa humanitária de salvar o Caramelo, e o lograram com o auxílio de bombeiros, veterinários e helicóptero.

Entretanto, quem elevou Caramelo à categoria de gaúcho resiliente foi um certo influenciador digital de fora do Estado e a Primeira-Dama nacional, Janja da Silva, os quais se propuseram a adotar o equino flagelado. Se existem os tais lacradores, haverá, também, os lacrados. A imprensa gaúcha adotou o Caramelo como símbolo da nossa resiliência.

Agora, a Capital de todos os gaúchos estuda criar um monumento aos voluntários que se entregaram ao salvamento dos atingidos pela maior catástrofe climática do Rio Grande do Sul.
Esperançoso, aguardo que não seja uma estátua equestre.

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