O Colador de Orelhas

Manoel nascera no campo, mas ainda guri foi para a cidade procurar um emprego que lhe pagasse ordenado mensal. Assim, não dependeria da sazonalidade do pouco que a família cultivava para viver. Atilado para compreender as coisas do mundo, percebeu que um salário líquido e certo ao final de cada mês seria melhor que contar sempre com ovo em cloaca de galinha. Não foi embora o Manoel sem que lhe doesse a alma.

E foi assim que trabalhou por toda a vida em uma indústria. O que faltou ao Manoel foi dedicação na busca de uma formação maior que os seis anos que frequentou a escolinha rural. A curiosidade e inteligência inatas que trazia, contudo, garantiu ao homem a estabilidade profissional. Era feliz, o Manoel.

Ouvia o rádio, lia muito os jornais e livros que lhe caíam às mãos. Compreendia o que lia, mas não conseguia reproduzir exatamente, pois, lhe faltava a linguagem .Quando queria demonstrar aos filhos uma lição aprendida, parafraseava a seu modo o que lera ou ouvira com vocabulário parco e, quando tentava enfeitar a conversa, metia uma palavra que não significava o que intuía que fosse. Foi assim que descreveu certo equipamento da fábrica onde trabalhava como um “mistério” de tão grande.

O Manoel exercia sua fé religiosa e política de forma discreta. Nunca fez proselitismo de qualquer delas. Estava sempre disposto a falar a seu modo das coisas em que cria, se alguém lhe preguntasse, mas não havia intenção de convencimento. Não sabia expressar direito, mas tinha com a clareza de um céu outonal, sua teogonia, cosmologia e soteriologia. Aos filhos, sim, passava valores e princípios que, como dizia, são como pedra-ferro, mas valem mais que ouro. Sempre que havia desinteligência entre os guris, repetia um velho aforismo que ouvia da mãe, buscando desestimular as vãs discussões: o calado sempre vence.Aprendeu com a mulher, que lia a Bíblia, um provérbio: a resposta branda desvia o furor. Amanoelizou para: responde direito para não deixar o outro mais brabo.

Manoel é um homem comum, mas de pensamentos profundos. Quando ouviu uma pregação evangélica que pendia para os poderes milagrosos de Jesus, seu tino o despertou. O pregador explanava como Jesus colara a orelha de um homem, a qual o discípulo Pedro havia cortado ao fio da espada, durante a prisão que levaria o Filho de Deus à morte. Sim, era sobrenatural curar instantaneamente uma orelha decepada, mas era “só” isso?

Manoel percebera que Pedro não havia aprendido importantes lições nos três anos em que andara com o Príncipe da Paz. A cena não tratava de demonstrar o poder de milagres de Jesus, mas de como é reprovável a luta fraticida. Condescendeu com Pedro, que pensou ser justa a causa porque feria, mas entendeu que as lutas devem ser sempre contra sistemas de ideias, e nunca pessoais. Que é melhor ser um colador de orelhas do que um cortador de orelhas. Que é melhor estancar do que fazer correr sangue.
Manoel processou tudo em um átimo, como se toda a sua rede neuronal estivesse trabalhando para isso. Como diríamos: um insight.

Chamou os guris para compartilhar sabedoria.
– Meus filhos, temos que ser coladores de orelhas.

Não entenderam imediatamente porque a ideia não era muito clara, mas seguiriam o pai para se tornarem coladores de orelhas.

Afinal,o pai nunca fora melhor com as palavras do que com os exemplos.

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