Não acompanho aquele “reality” que já se tornou tradição na grade de verão daquela tradicional emissora de TV. Chamam-no de BBB, ou Big Brother Brasil, e aos participantes enclausurados, anglofilamente,“brothers”. É uma invertida alusão à novela de George Orwell (1903-1950), britânico nascido na Índia, escrita em 1949, meses antes de morrer tuberculoso. No romance intitulado “1984”, o Grande Irmão é o que detém o poder de vigilância, manipulação e controle sobre todos (os irmãos menores, talvez), vítimas do totalitarismo.
No show de realidade da TV, entretanto, é a massa de televidentes que, ilusoriamente, está no controle de algumas vidas expostas às taras de voyeurs de todos os naipes do baralho sexual. Em sua vigésima-segunda edição, diz-se que o programa televisivo se tornou uma tradição brasileira.
Sob o diáfano véu das tradições, se acotovelam muitos movimentos que não conseguiriam fazer um “4” sob pena de precisarem de lançar mão de uma bengala para se manterem de pé. Quando ouço dizerem que uma e outra coisa são pertencentes à tradição, costumo perguntar: tradição de quem, cara bronzeada? (Sim, chamar brancos de “caras-pálidas” é tradição quase tricentenária dos nativos norte-americanos).
No Rio Grande do Sul, as tradições gaúchas se tornaram religião, intocáveis, a ponto de ser considerado um anátema quem não se pilcha, pelo menos, em 20 de setembro. Se são tradições de estancieiros ricos, os da casa grande, em que peões e agregados eram segregados nos galpões, não importa. Importante é que seja tradição. De alguém.
Aqui nas terras de Tristão Fagundes, os Poderes Executivo e Legislativo, situação e oposição, unânimes e em uníssono, foram às redes sociais declarar que são a favor de que todos nós, os pagadores de impostos, compremos uma área de terra e a doemos aos tradicionalistas locais para que não lhes falte diversão. Deixam claro que não são contra os tradicionalistas, mas deixam entrever que temeram a voz tonitruante do povo (o Grande Irmão às avessas, como já disse) e do bom senso (povo e bom senso nem sempre se dão as mãos), quando foram alertados do mau uso que se faria de 1,5 milhão de Reais, direto do erário para bolsos privados, para a desapropriação de uma várzea, alagadiça por definição, onde se promoveriam os tradicionais rodeios. Óbvio não se tratar de preconceito com os tradicionalistas montenegrinos. Óbvio não valer 1 milhão e meio aquela área para a destinação que lhe dariam.
Todas as tradições devem ser respeitadas e toleradas em sociedades democráticas e plurais, com iguais medida e peso, mas o culto pertence aos respectivos adeptos de cada uma, e não se deve cobrá-lo de quem não se sinta com ele obrigado. Tampouco, o Poder Público deve ter preferência por algum culto tradicional.
Ao dedicar dinheiro grande para que tradicionalistas gaúchos tenham seu espaço exclusivo, deixamos de fora as tradições quilombolas, ou afro, indígenas, alemãs, italianas, e as novas tradições culturais que vemos nascer, como o movimento hip-hop et alii. Ou, simplesmente a cultura de quem não se enquadra em nenhuma das citadas, mas que as valoriza como elementos da cultura geral.
Do que sei a respeito do BBB, a nova tradição brasileira, está que o prêmio ao vencedor da encarniçada, antiética e amoral disputa, monta a 1 milhão e meio de Reais. Por este valor, celebridades e subcelebridades expõem suas entranhas aos milhões de grandes irmãos.
Algum deles investiria esse ervanário no Tio Manduca?