Narciso

Iniciavam-se os anos 80 quando dois crimes em espaço de vinte dias abalaram a sociedade mineira. Dois homens mataram a tiros suas mulheres em “legítima defesa da honra”. Alegaram ciúmes e privação de sentidos, pois amavam – cada um – a sua mulher. Um anônimo, então, pichou um grande muro da capital, Belo Horizonte, com uma frase tão truncada quanto verdadeira: “se se ama não se mata”. A cacofônica sentença que inclui o “se” cumprindo duas de suas funções – conjunção condicional e pronome apassivador – foi reorganizada e vertida para a voz ativa por feministas, que criaram um movimento existente até hoje: “Quem ama não mata”.

Aí começaram – em plena ditadura – campanhas pelo fim da impunidade dosagressores, principalmente baseada no tradicional argumento “legítima defesa da honra”.
“Quem Ama Não Mata” também foi o slogan utilizado em 1981 por ocasião do segundo julgamento de Doca Street, acusado do assassinato da também mineira Ângela Diniz, em 1976.

Desde então, e com o advento da Constituição Federal de 1988, o Direito brasileiro evolui na proteção dos direitos das mulheres e na cominação de penas mais duras para os agressores. A lei 13.104/2015 classifica como “feminicídio” o homicídio qualificado praticado contra mulher, quando envolve violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher da vítima.

Ainda que tenha havido evolução da legislação e de políticas públicas – como a criação de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, por exemplo –os números da violência contra a mulher não arrefecem.Mesmo tão eloquentes, planilhas de controle são sempre frias e técnicas. Parecem longe demais dos nossos sentidos.

Até que um número, um dado estatístico, seja tomado de nossa vizinhança. Como aconteceu na última sexta-feira, 26, quando a cidade acordou com um corpo feminino estendido no chão de uma calçada.

Um corpo que se preparara para a paz do sono noturno, vestido de pijaminha rosade românticas florezinhas- tão de acordo com a feminilidade,apesar da compleição fortede quem se dedicava aos treinos de academia. O sono que lhe reporia as energias para o dia seguinte. Não houve dia seguinte. Osonoe a paz vieram de outra maneira, consequência da violência narcisística de quem não admite perdas, indiferente com a dor alheia, por se considerarmerecedor de todos os afetos e atenção sem necessidade de retribui-los. De alguém que se ocupou em construir um corpo e não desenvolveu a alma.

O corpo feminino encontrado por populares em uma calçada, coberto por manta vermelha, não estava ali por acaso. A mente insana de seu algoz planejou infligir maior sofrimento aos pais– a quem, com certeza os afetos da filha eram eternos e incondicionais-quando se deparassem com seu corpo inerte e frio à sua porta.

O narcisismo ferido foi apontado pelo psicólogo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Marcel Santos, como a principal motivação para feminicídios.Em matéria da jornalista Litza Mattos para o site O Tempo (23/12/2018), explica que o narcisismo ferido ocorre quando a pessoa entende que aquele outro, visto como objeto, não o satisfaz da forma como gostaria. Santos esclarece que, apesar de o narcisismo ser um processo inconsciente, tem-sea escolha de não praticar a violência.

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