Fomos assistir a cinebiografia de Elvis Presley, ídolo de um público multietário que fazia senhorinhas e senhorzinhos, gurias e guris mexerem a pélvis ao som do seu roquenrol barulhento, e os levava a babar na fronha com suas baladas românticas. Ainda hoje, emposto a voz ao tentar cantar um dos sucessos do Rei do Rock.
Elvis é o terceiro maior vendedor de discos da história (foi ultrapassado por Beatles e Michael Jackson) e, depois de morto, ganha mais dinheiro do que durante a carreira, encerrada em um 16 de agosto de 1977, quando morreu de ataque cardíaco, obeso e envenenado pelos barbitúricos que ingeria para dormir.
Porém (aaah, porém!), as novas gerações, especialmente a Z, que estará em breve no comando do planeta, mal ouviram falar de um tal Elvis, e se surpreendem ao saber que ele foi um dia censurado por balançar o corpo e gingar a pelve simulando um ato sexual, enquanto cantava (menos explicitamente do que Anitta, claro).
Business is business, já disse Milton Friedman, e os herdeiros do rei do rock não podem perder o filão de seus lucros. Resolveram apresentar aos “zês” o ídolo de seus avós. E não apenas isto.Ultimamente, crescem movimentos para o cancelamento póstumo do rei do rock. O motivo, apropriação da cultura negra. Um branquelo que ganhou muito dinheiro e fama cantando a música dos negros.
Uma cinebiografia poderia limpar a imagem do cantor e apresentá-la já filtrada para a gurizada que curte Maroon Five.
Elvis nasceu e cresceu no Mississipi, um dos últimos estados americanos a abolir a escravidão. Frequentava cultos pentecostais, ramo do cristianismo protestante que se propagou, principalmente, entre as comunidades afrodescendentes do sul americano. Nesses cultos avivalistas, cantava-se e dançava-se em êxtase. O mesmo êxtase de que era tomado quando cantava e rebolava em seus shows, anos depois. Conviveu com os negros sulistas dentre os quais surgiram os maiores nomes da música americana, tal como B. B. King, Little Richard, Big Mama Thornton, Sister Rosetta Tharpe e outros monstros do Blues e do Rock and Roll.
O roteiro do filme toma o cuidado de mostrar Elvis nos momentos em que a televisão anuncia as mortes de Martin Luther King e de Robert Kennedy, em abril e junho de1968, respectivamente. O pastor e o senador democrata eram ativistas dos direitos civis e pela igualdade racial. Naquele mês de junho Elvis estava gravando seu especial de fim de ano que marcaria seu retorno à cena musical. Contrariando seu agente Tom Parker que queria um meloso especial natalino, juntou-se ao diretor do programa, Steve Binder, para dar outro tom ao especial televisivo. Assim, enquanto Parker aguardava que o show culminasse com a música “I’llbe Home for Christmas” (Estarei em casa no natal), Elvis surpreendeu com “If I can Dream” (Se eu posso sonhar) de Walter Earl Brown, composta especialmente para a ocasião, levando em conta os sentimentos de Elvis pelas mortes de King e de Kennedy.
“Se eu puder sonhar com uma terra melhor / Onde todos os meus irmãos andam de mãos dadas / Diga-me porque meu sonho não pode se tornar realidade / Deve haver paz e compreensão algum dia / Fortes ventos de promessa que irão soprar / A dúvida e o medo / Se eu posso sonhar com um sol mais quente / Onde a esperança continua brilhando para todos”.
Elvis foi cancelado pelo establishment americano branco por ser um mau exemplo para a juventude da geração silenciosa dos anos 50. Era um branco que cantava música negra. Agora, o devemos cancelar pelo mesmo motivo?
Não há apropriação indevida quando a cultura é produção essencialmente humana.