A vida era melhor quando todos os temas do mundo eram respondidos com a marcação de um xis na resposta certa. As alternativas para um teste de múltiplas escolhas não eram muitas e apenas uma satisfazia a questão. E se a resposta não fosse tão óbvia, ainda poderíamos recorrer à lógica racional para intentar matar a questão. Era um tempo em que tínhamos mais certezas, pela Ciência ou pela fé. A Ciência, verificável. A fé, dogmática. Não se as questionavam e, quando colidiam, se excluíam. Era mais fácil termos uma “opinião formada sobre tudo”.
Quando a Ciência descobriu que o planeta Terra não tinha nenhuma razão para ser diferentão de qualquer outro corpo celeste – senão redondos, arredondados – a fé de alguns foi abalada, ainda que nenhuma escritura sagrada diga em algum versículo alhures perdido, que a humanidade habita um imenso terreno plano com algumas corrugosidades. Quando nossas certezas são expostas à luz, algum bolor será eliminado.
A fé que professamos, tanto mais sólida é quanto mais puder ser exposta à razão. O que leva a fé ao confronto racional são as crenças dela inferentes, muitas vezes sem nenhum liame com os fatos iniciais. Qual a relação, por exemplo, entre “no princípio criou Deus os céus e a terra” (Gênesis 1:1) e a ideia de um planeta plano como uma mesa de sinuca? Não bastaria contemplar a própria criação (ou a natureza casual para os não-crentes), a lua e todos os astros reluzentes na abóboda celeste para, pelo menos, cogitarmos que a nossa terra poderia ser, também, “redonda”? (Sabe-se que a forma terrena, mais especificamente, é “geoide”, ou seja, da forma única da terra mesma, que é levemente achatada nos polos).
Para total isenção do julgamento, porém, devemos considerar que os antigos não detinham tecnologia suficiente para, mesmo acidentalmente, circum-navegar o globo, ou subir além de alguns metros em árvores e montanhas. Toda a ideia de mundo que cultivavam era extraída da percepção daquilo que enxergavam, ou seja, o mundo plano até a linha do horizonte (que, presumiam, era o limite do abismo).Então, depositavam fé em um Deus, ou deuses, criador(es)do universo, mas que não havia(am) lhes contado que pisavam sobre um globo que, de tão grande, possibilita que, a perder de vista, disfrutemos de segmentos planos, onde deitamos os campos de futebol, as ciclovias, os aeroportos.
Quando confrontados com a inequívoca esfericidade do planeta, muitos entraram em crise existencial e/ou perderam a fé, ainda que o profeta Isaías (765 a.C – 681 a.C) proclamara a respeito do Deus judaico-cristão que “Ele é o que está assentado sobre a redondeza da terra, …” (Isaías 40:22a). A fé de uns é tão mouca que não ouve os seus próprios oráculos, antes de suas particulares exegeses.
A escalada científico-tecnológica nas últimas décadas descontruiu muitas “verdades” e, antes de desmanchar tudo que é sólido no ar, tornou líquida a modernidade. O conceito de modernidade líquida, desenvolvido pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman, descreve esta nova época em que relações sociais, econômicas e de produção são frágeis e fluidos que, como os líquidos, escorrem e tomam a formados recipientes em que estão contidos.Ao contrário, a modernidade sólida se caracterizava pela rigidez e solidificação das relações sociais, da ciência e do pensamento, conforme tentei demonstrar com a citação da falsa dicotomia ciência e fé, cada qual definindo algum tipo de certeza na vida.
A vida se complicou por que não é mais um teste de múltipla escolha. Não há uma resposta única para cada pergunta. Não sabemos mais como responder às grandes questões da vida.
A fé é a melhor forma de estarmos seguros. A fé que não nega o conhecimento científico, mas que nele vê a revelação do que é eterno e sem variação.