Espelho meu

Não gostava de me ver em fotografias e no espelho. A imagem nunca era como eu pensava que deveria ser. Era sempre mais feio do que toda a gente. Se a razão me metia na média, demonstrando como havia pessoas menos belas do que eu, racionalizava:“sim, mas apenas alguns detalhes nelas são feios, como o nariz, por exemplo. Eu sou todo feio”. Essa dismorfia infanto-juvenil teria como raiz o fato de eu ter os chamados dentes salientes, aquele desalinhamento para fora, que me definia como “dentuço” (não, não são apenas as pessoas chamadas “Ronaldo” que são dentuças). Coelho, coelhinho, “coêio”, eram os meus apelidos, para não citar os mais depreciativos. Então, não gostava de posar para fotos e espelhos.

Apenas o homem e outros pouquíssimos animais tem consciência de si mesmos em frente ao espelho. A maioria dos animais vê em sua própria imagem refletida um outro de sua espécie.

O primeiro tipo de “espelho” usado era a natureza – reflexos em lagoas, lagos e rios de águas calmas. Mesmo assim, nunca tínhamos nos “visto” verdadeiramente e, por isso, o conceito próprio de quem éramos tinha a nitidez das superfícies tremeliques das águas.

Em seu livro Millennium: From Religion to Revolution: How Civilization Has Changed Over a Thousand Years (Milênio: Da Religião à Civilização: Como a Civilização Mudou Ao Longo de Mil Anos, tradução livre), o autor Ian Mortimer (citado pelo site Dazed) argumenta que, antes da invenção do espelho, o conceito de identidade individual que temos hoje não existia. “O desenvolvimento dos espelhos de vidro marca uma mudança crucial, pois eles permitiram que as pessoas se vissem adequadamente pela primeira vez, com todas as suas expressões e características únicas”, escreve.

À medida que a qualidade dos espelhos melhorou e a luz bruxuleante das velas deu lugar à eletricidade, a autoconsciência visual foi intensificada e o foco se voltou para dentro – uma mudança que teve um impacto significativo.”

A autovisão constante pode amplificar a autocrítica e a fixação em nossa aparência física. Focar em cada ângulo e detalhe do nosso corpo, faz-nos perder a visão ampla. Sem limites, pode alimentar uma obsessão pela autoimagem, alertam os profissionais da saúde mental.

O espelho, entretanto, sempre limitou os ambientes e os momentos em que nos dispúnhamos à auto-observação. Foi então que surgiram as selfies, os vídeos curtos, as vídeo conferências, e não há mais como nos escondermos de nós mesmos.“A autovisualização ocasional é normal, mas em excesso distorce a autopercepção”, diz a terapeuta americanaSally Baker, citada pela Dazed.

Não ajuda o fato de que os avanços na tecnologia tenham feito com que não apenas nos vejamos com tanta frequência, mas que é possível mudar a forma como olhamos através de filtros– e, portanto, ver todas as possibilidades de como poderíamos ser. E quanto mais alteramos nossas aparências digitalmente, mais dissonância isso cria quando nos olhamos no espelho. Pessoas entram em sofrimento psicológico porque a imagem que estão apresentando online e a imagem que estão criando de si mesmas não corresponde ao que veem no espelho. Como os animais, veem apenas um outro da mesma espécie.

Talvez não consigamos escapar das superfícies refletivas como água e espelhos, mas sempre podemos limitar nossa exposição às mídias sociais.

Quando eu não me gostava diante do espelho ou da máquina fotográfica, fugia deles como um coelho do lobo.

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