Talvez seja cringe lembrar agora, mas em 1985 o Brasil inaugurou a Nova República, o primeiro governo civil depois de 21 anos de sucessões militares na presidência da República. O governo era civil, mas não necessariamente eleito pela entidade – “aquela” – da qual emana todo o poder e em nome da qual todo o poder será exercido.
O povo fora deixado de fora da eleição, apesar do histórico movimento popular pelas “diretas já”. José Sarney, o presidente, seria vice-presidente não fosse a morte de Tancredo Neves, antes da posse.O país não conseguia se livrar do entulho autoritário. Sarney era civil, mas apegado às gandolas dos generais. Coisas do imponderável, diria este escriba, não muito afeito às teorias conspiracionais.
Sarney presidente carecia de popularidade. Lançava pacotes econômicos sobre pacotes econômicos para controlar a inflação e só fazia retroalimentar o dragão, contumaz devorador de salários e da economia em geral.
Augusto Ruschi (pronuncia-se “Ruski) foi um cientista que dedicou 50 anos de sua vida ao estudo de espécies vegetais, mamíferos e aves da mata atlântica. O naturalista era conhecido como o “o homem dos beija-flores”, em razão da paixão que nutria por esses pássaros. Reconhecido internacionalmente por suas publicações científicas, frutos de suas pesquisas, não seria reconhecido na rua pela maioria dos brasileiros. Em 1986, Ruschi finalmente se tornou popular, mas por razão diferente daquela que o tornara reconhecido no meio acadêmico e científico.
Acometido por enfermidade hepática, Ruschi acreditava que havia sido contaminado pelo veneno de sapos da espécie dendrobata, minúsculos e coloridos batráquios amazônicos. Fraco e sem esperanças na ciência médica, o homem dos beija-flores acreditou que a medicina ancestral dos índios poderia ajudá-lo. Sarney, o presidente indireto,viu ali uma grande oportunidade de melhorar seu ibope. Às expensas do erário, mandou transportar o cacique Raoni e o pajé Sapaimdas profundezas das matas mato-grossensespara o Rio de Janeiro, onde se encontrava o cientista doente. Avião da FAB trouxe do Xingu as ervas que seriam usadas para o tratamento. Por uma foto de Ruschi, Raoni já diagnosticara: “está com cara de sapo”.
Nas coletivas de imprensa, jornalistas perguntavam: como homem de ciência, o naturalista acreditava na fé dos índios? Estaria o cientista se rendendo ao “curandeirismo”? Para Ruschi não havia oposição ciência-medicina popular, destacando o conhecimento dos poderes das plantas pelos índios. Foram quatro dias de pajelança ao final dos quais deu-se por curado o cientista. Ruschi declarou, então, que seguiria com tratamento alopático. Seguro morreu de velho, como sabemos nós, os caras-pálidas.
Augusto Ruschi morreu quatro meses depois, aos 70 anos, em 3 de junho de 1986. A morte foi provocada por cirrose hepática e a autópsia não revelou nenhuma contaminação por veneno. Nem estava contaminado por veneno de sapo nem foi curado pela pajelança. E a popularidade de José Sarney, em vetor contrário ao da inflação galopante do seu governo, desceu ao rés do chão até o fim da nova república, apesar de todas as pajelanças econômicas de seus ministros.
Quando o prefeito Gustavo Zanatta participou em seu gabinete de um ritual xamânico, penso que foi apenas o caso de não saber dizer “não” aos amigos.
O sucesso de uma administração e a popularidade de um administrador se devem mais à boa governança – pragmática, técnica e ética – do que interferências de energias positivas ou negativas, ainda que ditas ancestrais.
O exercício da fé não deve se dar em detrimento da razão.